Folha de S.Paulo

Casal decide recorrer junto a morte assistida

Documentár­io mostra últimos dias de Charlie e Francie Emerick, que seguiram lei aprovada em estado americano

- JONEL ALECCIA Charlie e Francie Emerick se casaram em 4 de abril de 1951 e morreram juntos em abril de 2017, em casa, no Oregon (EUA)

Família queria mostrar como funciona morte assistida, mas vídeo levantou críticas por romantizar suicídio

Na última manhã de suas vidas, Charlie e Francie Emerick se deram as mãos.

Vivendo em Portland, Oregon, casados havia 66 anos e ambos com doenças terminais, eles morreram juntos em sua cama no dia 20 de abril de 2017, depois de tomar doses letais de medicament­os obtidos graças à lei de morte com dignidade vigente em seu estado.

Francie, 88 anos, morreu primeiro, 15 minutos depois de tomar o medicament­o —um sinal do mau estado de seu coração enfraqueci­do. Charlie, 87, que tinha câncer de próstata e parkinson, morreu uma hora mais tarde.

“Eles não se arrepender­am de nada e não deixaram nada inacabado”, disse Sher Safran, 62 anos, uma das três filhas do casal. “A impressão que tinham era que sua hora tinha chegado. Significou muito saber que estiveram juntos nesse momento.”

Nas duas décadas passadas desde que o Oregon se tornou o primeiro estado americano a legalizar a morte assistida, mais de 1.300 pessoas morreram ali depois de obter receitas de medicament­os letais. Os Emerick integram a lista de 143 pessoas que o fizeram em 2017. Parece que foram o único casal que tomou os medicament­os ao mesmo tempo, segundo autoridade­s.

Há anos eles defendiam o direito de escolha da morte com dignidade. Quando estado de saúde deles se agravou, eles ficaram gratos por poderem contar com essa opção, disseram familiares.

“Essa sempre foi a intenção deles”, disse a filha Jerilyn Marler, 66, a principal cuidadora dos dois. “Se houvesse um jeito de controlare­m a própria morte, eles o fariam.”

Antes de morrer, os Emerick deixaram que Sher e seu marido, Rob Safran, 62, fundadores da TV Share Wisdom, de Kirkland, Washington, registrass­em seus últimos dias e horas de vida. A ideia inicial era que o vídeo fosse apenas para a família, mas Sher pediu permissão a seus pais para publicá-lo.

“Acho que vai ajudar a mudar o modo como as pessoas encaram a morte”, disse.

O resultado é “Living & Dy- ing: A Love Story” , documentár­io recente que apresenta o que esteve por trás da decisão final dos Emerick e sua determinaç­ão de levá-la a cabo.

Rodado com smartphone­s segurados na mão, o vídeo capta o casal em sua última semana de vida.

O otorrinola­ringologis­ta Charlie Emerick foi missionári­o médico na Índia. Ele recebeu o diagnóstic­o do mal de Parkinson em 2012. Sofreu de câncer da próstata e problemas cardíacos, e no início de 2017 soube que teria seis meses ou menos de vida. No documentár­io, refletiu sobre a possibilid­ade de recorrer à morte assistida.

“Se você continuar, Charlie, só vai ficar cada vez pior”, ele explicou a Sher Safran em voz trêmula. “A outra opção não pode ser pior.”

Francie Emerick, que cuidava das relações públicas do hospital na Índia, é vista no vídeo falando claramente e aparentand­o vitalidade. Suas filhas, porém, disseram que sua energia era passageira e disfarçava anos de declínio que começaram depois de ela ter câncer e infartos.

Os dois tomaram o cuidado de seguir o que manda a lei, que requer que os pacientes sejam examinados por dois médicos para determinar um prognóstic­o de seis meses ou menos de vida, além de múltiplas confirmaçõ­es de sua intenção e da capacidade dos pacientes de ingerir as drogas letais sozinhos. “Queríamos que fosse feito conforme a lei”, disse Francie.

O vídeo conta a história da vida do casal. Os Emerick se conheceram quando eram estudantes universitá­rios no Nebraska, se casaram em abril de 1954 e passaram anos da década de 1960 como missionári­os médicos em Miraj, na Índia. A carreira de Charlie Emerick os levou ao sul da Califórnia e então ao estado de Washington, à Índia e finalmente ao Oregon, ao mesmo tempo em que criavam suas três filhas. Em 2004 eles se mudaram para um apartament­o em uma comunidade de aposentado­s em Portland.

Foi ali que eles morreram numa quinta-feira nublada na primavera americana passada, seis dias após uma festa de família que teve, a pedido de Francie, sorvete com refrigeran­te. O clima da reunião foi feliz, mas também marcado por tristeza.

Os Emerick pediram a ajuda de Linda Jensen, veterana líder de equipe da ONG End of Life Choices Oregon, que ajuda pessoas interessad­as em recorrer à lei estadual de morte com dignidade.

“Eles estavam muito bem informados”, falou Jensen, que já deu assistênci­a a dezenas de mortes ao longo de 13 anos. “O que queriam era entender como acontece de fato uma morte planejada.”

O vídeo inclui um encontro entre Jensen e os Emerick dois dias antes de eles morrerem. Ela lhes disse que não se pareceria em nada com uma morte na televisão.

“Você não perde o controle da bexiga e dos intestinos. Não fica arfando, tentando respirar”, explicou. Eles simplesmen­te adormeceri­am.

Charlie e Francie estudaram o plano: não tomariam café da manhã; apenas, às 9h, comprimido­s para acalmar o estômago, seguidos pelas drogas letais uma hora depois.

Sher e Jerilyn aparentava­m calma e determinaç­ão quando ajudaram a finalizar os planos de seus pais. “Houve muita tristeza antes da hora, porque sabíamos que isso ia acontecer”, disse Jerilyn.

Membros da família discordara­m da decisão do casal, mas os Emerick estavam determinad­os. “Vocês dois nunca hesitaram?”, Sher perguntou à sua mãe. “Nunca”, respondeu Francie.

O vídeo captou detalhes da manhã final: Charlie fazendo uma saudação de adeus à câmera quando é levado de cadeira de rodas pelo corredor, o último abraço choroso de Sher e sua mãe, Charlie e Francie de mãos dadas depois de engolir os medicament­os.

Não houve funeral após as mortes. Charlie e Francie Emerick haviam doado seus corpos para pesquisas, através de um programa da Oregon Health & Science University.

Nesse ínterim, disse Sher Safran, o vídeo é algo que reconforta a família e é precioso para ela. “É muito lindo poder ouvir as vozes deles”, ela comentou. Para ela, o documentár­io também cumpre a finalidade de ajudar outras pessoas a entender como funciona a morte assistida.

Stephen Drake, analista de pesquisas da Not Dead Yet, que defende direitos de deficiente­s, porém, tem reservas sérias quanto à divulgação do vídeo. Ele teme que apresentar a morte assistida sob ótica positiva possa romantizar a ideia não apenas do suicídio, mas de um suicídio duplo.

Sher Safran prevê encontrar críticas ao documentár­io, mas ela disse que a obra honra a posição dos Emerick segundo a qual todos, se possível, devem poder decidir quando e como vão morrer. CLARA ALLAIN

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Fotos Kaiser Health News
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Sher e Rob Safran fizeram documentár­io sobre os pais dela

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