Não aceitaremos ser importunadas!
Muito se fala da impunidade e da baixa efetividade dos crimes contra a dignidade sexual no Brasil. Em um país em que 99,6% das mulheres afirmam já ter sofrido assédio sexual na rua, em uma cidade onde o Metrô afirma haver ao menos quatro denúncias formais de assédio por semana, fica claro que o direito não está oferecendo uma resposta à altura para proteger suas cidadãs e punir seus assediadores.
Apesar dos sensíveis avanços nos debates acerca da cultura do estupro, ainda nos deparamos com muita naturalização desse tipo de comportamento. A dignidade sexual das mulheres não pode ser relativizada.
Nossos corpos não são públicos, e qualquer tipo de constrangimento nesse sentido deve ser condenado pelo Estado, até mesmo para poder cumprir o que foi determinado seja pela Constituição, seja em tratados internacionais, como a Convenção Belém do Pará, que determina que o país deve tomar todas as medidas cabíveis, inclusive legislativas, para prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra as mulheres.
Claro está que a legislação atual é mais do que insuficiente para proteger suas cidadãs, razão pela qual até mesmo o homem que cometeu o grotesco ato de ejacular no pescoço de uma passageira num ônibus em São Paulo saiu praticamente ileso dos tribunais, gerando grande inconformismo na opinião pública. Porém, o que poderia ser feito se não temos leis que de fato amparem o Judiciário para condenar esse tipo de conduta?
O tratamento legal que temos hoje apresenta um grande hiato entre o crime de estupro —que é hediondo, imprescritível, com uma pena bastante elevada— e os demais tipos de violência sexual contra a mulher, o que acaba fazendo com que as já poucas denúncias realizadas nem cheguem a ser enquadradas como algum crime. Afinal, para que seja configurado o crime de estupro, é absolutamente necessário que o agressor tenha se utilizado de violência ou grave ameaça para constranger a vítima.
E para as diárias importunações que acontecem nos locais públicos, em que a vítima nem chega a ter tempo de reagir diante das investidas ou palavras do assediador?
Resta a nós, operadoras do direito comprometidas, uma figura praticamente abandonada da Lei de Contravenções Penais, de nome de difícil memorização: importunação ofensiva ao pudor, que pode gerar, no melhor dos casos, uma insignificante multa.
A ideia de tipificar essa conduta não vem de simples desejo punitivista nem de populismo penal frente às reivindicações populares pelo fim da cultura do estupro e pela igualdade de direitos. Vem como conquista do movimento de mulheres para garantir reconhecimento.
Mediante a aprovação do projeto de lei que busca criminalizar a importunação sexual, estamos afirmando que, para essa nova sociedade que estamos construindo, é inaceitável todo tipo de conduta que busca reduzir a mulher a mero objeto, aquela surdez seletiva que não quer entender que “não é não”, bem como o (esperamos) moribundo entendimento de que o corpo da mulher é público.
O que se deseja não é que lotemos cadeias com assediadores. Ao contrário, busca-se com isso alterar a realidade, oferecendo recursos para que as mulheres possam se resguardar e se sentir mais seguras nas cidades em que habitam, sem receio de se locomover e de frequentar espaços. Uma lei não tem poder de fazer isso sozinha, claro. Mas é um primeiro e necessário passo. MARINA RUZZI,