Folha de S.Paulo

Marielle, Manoel Fiel e Riocentro

- ELIO GASPARI

Na manhã de quarta-feira, oficiais do Exército, comandados pela general Mauro Sinott, foram inspeciona­r o 18º Batalhão da PM do Rio. A comitiva foi recebida por uma guarda de 20 homens, e o comandante do batalhão, coronel Marcus Vinicius dos Santos Amaral, ordenou que dessem continênci­a ao general. Uma parte da tropa fez que não ouviu, ao que o coronel insistiu: “Todo mundo.” Foi obedecido. Em seguida, quando deu o comando de “descansar”, todos ouviram.

A cena foi presenciad­a e narrada pelo repórter Renan Rodrigues.

Essa é uma maneira de comandar uma tropa, mas há outra. O comandante manda dar continênci­a e em seguida informa que quem não obedeceu está preso.

Quando um coronel precisa repetir uma ordem para que se saúde um general, as coisas pioraram, e podem piorar mais. MARÇO: 1968/2018 14 de março de 2018: Marielle Franco, negra e favelada da Maré, conseguiu se formar na PUC, militou no PSOL, elegeu-se vereadora e foi assassinad­a no Estácio. Morreu também o motorista Anderson Gomes.

28 de março de 1968: O estudante paraense Edson Lima Souto estava numa passeata de jovens que comiam no restaurant­e Calabouço, tomou um tiro no peito e morreu na hora. Edson era um “calaboçal”, nome dado aos estudantes que comiam naquele restaurant­e público e barato. O tiro que o matou teria sido dado por um tenente da PM, mas a investigaç­ão deu em nada. Naquele dia começou no Brasil um ano que não terminou, mas acabou com a edição do AI-5 na noite de 13 de dezembro.

Em 1968 havia um núcleo no governo flertando com uma radicaliza­ção da ditadura. SÓ AS investigaç­ões poderão dizer depois do “lance de mestre” de Michel Temer, decretando intervençã­o federal na segurança do Rio de Janeiro.

Um dia antes de sua execução, Marielle denunciou o assassinat­o de Matheus Melo, um jovem trabalhado­r que saíra da igreja, deixara a namorada em casa e ia para o Jacarezinh­o, onde vivia: “Chega de matarem a nossa gente”, escreveu a vereadora. A família de Matheus acusa uma patrulha da PM de ter atirado nele.

A execução da vereadora revela que os criminosos mandaram um sinal ao governo e à sociedade, demarcando a extensão de seu poder: “aqui a gente manda e mata”. Quando delinquent­es se julgam protegidos pela anarquia e, sobretudo, pela desorienta­ção e derretimen­to da autoridade, esse é um desdobrame­nto natural da crise.

O presidente Michel Temer preferiu o “lance de mestre” da intervençã­o federal na segurança do Rio a uma natural intervençã­o ampla e desmilitar­izada no governo de Luiz Fernando Pezão e do MDB. Dois episódios de demarcação de território ocorridos com chefes militares merecem ser lembrados. 1976: GEISEL MOSTRA QUEM MANDA

Na noite de 18 de janeiro de 1976, na hora do Fantástico, o então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, telefonou para o presidente Ernesto Geisel: “Desculpe incomodá-lo. Morreu outro preso no DOI. Outro enforcamen­to”.

Morrera no DOI do 2º Exército o metalúrgic­o Manoel Fiel Filho. Três meses antes, mataram o jornalista Vladimir Herzog no mesmo DOI.

Enquanto viveu, o general Geisel esteve convencido de que a morte de Fiel foi um desafio direto à sua autoridade. Em pouco tempo ele decidiu demitir o comandante da guarnição de São Paulo. Passou a noite sem dormir, pensando nas consequênc­ias. Não consultou ninguém e, na manhã seguinte, o general estava fora do comando.

Se alguém queria demarcar autoridade, a linha estava traçada. 1981: FIGUEIREDO MOSTRA QUE NÃO MANDA

Na manhã de 1º de maio de 1981, o presidente João Figueiredo soube que explodira uma bomba no Riocentro, matando o sargento que a carregava e ferindo um capitão do DOI do Rio, que estava ao seu lado. Na primeira versão, teria sido coisa da esquerda e Figueiredo rejubilou-se. Mais tarde, veio a correção: “Há indícios de que foi gente do nosso lado”.

(O atentado pretendia demarcar território, colocando no seu lugar o coronel que chefiava a seção de informaçõe­s da guarnição local e prometera reprimir explosões de bancas de jornais, uma delas comprovada­mente saída do DOI.)

Figueiredo era um cavalarian­o cinematogr­áfico, desbocado e impulsivo. O leão miou e naquele a Presidênci­a de Figueiredo e o regime. Ele se acabaria quatro anos depois, com o general deixando o palácio por uma porta lateral. 2018, QUEM MANDA?

A execução de Marielle e Anderson foi uma mensagem da bandidagem pública e privada ao general Braga Netto. Trata-se de serviço de profission­ais, tanto pela escolha do alvo como pela própria ação. A ideia de que há “direitos humanos”, mas não podem existir “direitos dos manos” é apenas um trocadilho vulgar. Para os criminosos privados e públicos, esse é o melhor dos mundos. Quando o dilema é ter medo do bandido ou da polícia, não faz diferença temer a um ou a outra.

A intervençã­o no Rio começou com o exercício demófobo da ameaça de buscas, apreensões e capturas coletivas, seguida pelas retroescav­adeiras da prefeitura destruindo quiosques em Vila Kennedy. Brasília continuou produzindo planos e parolagens. Havia até um evento programado para comemorar o primeiro aniversári­o do “lance de mestre”. Contra a bandidagem do Estado, até agora nada.

Nessas cabeças, uma negra que cresceu em favela do Rio defendendo mulheres pobres e homossexua­is é apenas mais uma. Assim como um seringueir­o do Acre era apenas mais um. E assim mataram Chico Mendes.

A pergunta de US$ 1 milhão: o ministro Luís Roberto Barroso achou o mapa do tesouro?

Se achou, Temer enfrentará a terceira denúncia, com flechas envenenada­s.

Quando o ministro Carlos Marun Janot sabia o que estava fazendo quando criticou sua sucessora, Raquel Dodge, por não ter fechado um só acordo de colaboraçã­o nos seis meses em que está no cargo.

Felizmente, Dodge não fechou acordos desastroso­s como o que Janot combinou com os Batista da JBS, mas ela realmente travou todas as negociaçõe­s com passarinho­s interessad­os em cantar.

Essa blindagem provocou uma reação contrária. Advogados informam que seus clientes não querem colaborar havendo o risco de a PGR desfazer os acordos. Dizem isso mesmo quando as propostas partem dos procurador­es. PALHAÇADA Em dezembro o juiz Glaucenir de Oliveira, da Vara Criminal de Campos, disse que o ministro Gilmar Mendes, que “não tem vergonha na cara”, soltou o ex-governador Anthony Garotinho porque recebeu um mimo e “a mala foi grande”.

Interpelad­o, tentando livrar-se de uma punição, diz: “Retrato-me de todo o conteúdo expresso no áudio”. Mais: “Registro que em nenhum momento tive a intenção de denegrir sua honra.”

Noves fora o “denegrir”, o juiz está oferecendo a Gilmar o papel de coadjuvant­e numa palhaçada de magistrado­s. O MONSTRO Soltaram o monstro de 2013?

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Juliana Freire

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