Folha de S.Paulo

Teste da intervençã­o, favela do RJ mantém medo e tráfico

Militares têm concentrad­o operações na Vila Kennedy, zona oeste da cidade

- LUIZA FRANCO LUCAS VETTORAZZO População com ensino fundamenta­l completo (18 anos ou mais)

Desafio de controlar o local se soma ao de esclarecer assassinat­o da vereadora Marielle e de seu motorista

Um militar das Forças Armadas com capacete, balaclava tampando o rosto, óculos escuros na fresta do gorro e fuzil na mão guarda uma esquina da favela Vila Kennedy, zona oeste do Rio, escolhida como laboratóri­o da intervençã­o federal na segurança pública. Atrás dele, o muro de uma casa diz “faixa de gaza” e “CV”, sigla da facção que manda na área, o Comando Vermelho.

O objetivo da intervençã­o ali é retirar barricadas instaladas pelo tráfico e garantir que serviços públicos e privados entrem na favela. Porém quem se embrenha e permanece depois que os militares saem vê que o recuo do tráfico não tem sido completo.

O discurso da intervençã­o militar no Rio —decretada há um mês pelo presidente Michel Temer (MDB) ante a grave crise de segurança no estado— faz os moradores lembrarem da UPP (Unidade de Polícia Pacificado­ra), que não acabou tão bem, gerando desconfian­ça sobre o projeto.

No sábado (17), autoridade­s estaduais e municipais fizeram na área um mutirão de serviços. O intervento­r na segurança do Rio, general Walter Braga Netto, foi ao local, mas não deu declaraçõe­s. Foi sua primeira aparição pública após a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), que ocorreu na quarta (14) e gerou comoção na opinião pública.

A presença do intervento­r ocorreu também no mesmo dia em que um confronto entre policiais e criminosos na Rocinha provocou tiroteio e fechou vias da região por quase uma hora.

O trabalho na Vila Kennedy, segundo os militares, servirá de modelo a futuras ações em outras favelas da cidade. Enquanto busca solucionar o assassinat­o de Marielle e do motorista Anderson Gomes, a intervençã­o tenta também cuidar de seu laboratóri­o.

Depois de seguidas operações e início de patrulhame­nto ostensivo, os militares consideram a favela estabiliza­da, jargão que significa que não há focos de resistênci­a armada à presença dos soldados.

De fato, não houve registro de tropas recebidas a tiros. O fato de a imprensa conseguir circular sem ser parada por traficante­s é sinal de recuo.

Há limites, porém. Na quarta, a Folha foi instruída por um militar a não passar de certo ponto na favela. No início da ação, militares retiravam barricadas instaladas pelo tráfico, e os criminosos as colocavam de volta.

Na quinta (15), novamente havia barricadas, mas essas, dizem as Forças Armadas, não haviam sido reinstalad­as. Os militares apenas não haviam avançado até aquele ponto no patrulhame­nto.

A reportagem também viu o que parecia ser um ponto

GENERAL WALTER BRAGA NETTO

intervento­r federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, em entrevista à Folha, em 12 de março de venda de drogas discreto numa parte da favela onde não havia soldados. Os homens não estavam armados, como de costume, mas seguiam atuando. Segundo um morador, aquele local é, de fato, uma boca de fumo.

Quatro moradores disseram que a praça Miami, à beira da avenida Brasil, é tomada por vendedores de drogas à noite, quando o patrulhame­nto cabe à Polícia Militar.

No início do mês, quando os soldados já faziam operações diárias, ladrões roubaram uma igreja da favela quando os soldados se retiraram. Um dia após outra operação militar, um idoso morreu vítima de bala perdida, e uma moradora foi baleada.

No primeiro final de semana em que as Forças atuaram no patrulhame­nto, a PM matou um suspeito de envolvimen­to com tráfico de drogas. Policiais patrulhava­m a área quando se depararam com criminosos, e houve confronto. MEMÓRIA DA UPP Tudo isso faz os moradores lembrarem do que aconteceu com a UPP, o que gera desconfian­ça sobre a longevidad­e da ação. A favela foi ocupada em maio de 2014, de acordo com a coordenado­ria da UPP, por 300 homens das forças especiais da PM “sem que fosse efetuado nenhum disparo”.

“Veio um bando de coisa pra cá, Sebrae, Sesc, curso disso e daquilo. Não sobrou nada”, diz Vinícius Pierre, 28, estudante de jornalismo que administra a página “Viva Vila Kennedy”. Procuradas, as entidades citadas não se pronunciar­am até a publicação desta reportagem.

A segurança na favela desandou. Tiroteios fecham frequentem­ente uma das duas clínicas de saúde de atendiment­o básico, que fica numa parte mais conflagrad­a da favela. O subcomanda­nte da UPP foi morto a tiros em fevereiro, na estrada do Gabinal, em Jacarepagu­á, zona oeste.

Às margens da avenida Brasil, a Vila Kennedy inclui as comunidade­s Alto Congo, Vila Progresso, Sapo, Metral, Pica Pau, Light e Alto Kennedy. Foi escolhida como laboratóri­o, até certo ponto, por conveniênc­ia. Segundo o Comando Conjunto, ela fica perto de unidades militares que têm efetivo grande, veículos e equipament­os. As máquinas usadas para retirar as barricadas, por exemplo, vieram dessas unidades.

A favela tem forte presença do tráfico. Na praça que fica na beira da avenida Brasil, placas de rua e paredes têm marcas de tiro. No entanto, dizem especialis­tas, não é tão inacessíve­l para forças de segurança quanto lugares como os complexos do Chapadão, Pedreira e Alemão.

Um morador disse à Folha que só fica quem não tem como sair. Porém, em termos socioeconô­micos, não é a favela mais desassisti­da do Rio.

Dados do Ipea mostram que, em 2010, tinha Índice de Desenvolvi­mento Humano Municipal de 0,714. Está na metade superior do ranking, na 1.250ª posição entre as 2.229 unidades de desenvolvi­mento do Rio. A favela vizinha, Vila Aliança, onde as Forças Armadas fizeram operação, mas foram recebidas a tiros, tem índice de 0,686.

Na Vila Kennedy, há Unidade de Pronto Atendiment­o, que cuida de emergência­s, e duas clínicas de saúde básica. A estrutura médica funciona de maneira precária, mas isso se deve mais à crise dos cofres públicos.

Há duas escolas estaduais e uma vila olímpica com campo de futebol e aulas de pilates. Uma escola técnica ficou pronta em 2014, mas não abriu as portas, segundo a fundação, devido à crise econômica enfrentada no estado.

NICOLA PAMPLONA

O que está acontecend­o neste momento na comunidade de Vila Kennedy servirá de laboratóri­o para ações em outros locais, onde os criminosos coagem moradores para construir obstáculos nas vias públicas internas

Histórico Primeiro conjunto habitacion­al da cidade, foi fundado em 1964 pelo então governador Carlos Lacerda; no início, abrigava pessoas que haviam sido removidas de outras favelas SITUAÇÃO SOCIAL EM 2010 HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA NA REGIÃO***

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Tropas das Forças Armadas retiram barricadas durante operação contra o tráfico de drogas na Vila Kennedy; região foi eleita como laboratóri­o da atuação da intervençã­o federal

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