Folha de S.Paulo

Marielle, Carmem Miranda, 9mm

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; ANTONIO PRATA terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

EU EVITO usar esta coluna como válvula para as toneladas de indignação que, como todo brasileiro, trago comigo. Meu ofício é a crônica. Meu ramo é a instalação de sorrisos no canto da boca, não a liberação de gritos engasgados na garganta. Não que eu ache o sorriso superior ao grito, longe disso, é que miro nos lábios há duas décadas: quando faço crônica, modéstia à parte, é com algum conhecimen­to de causa. Quando grito, não me diferencio de qualquer textão de Facebook.

Evito, mas nem sempre consigo. Hoje é um destes dias em que perco a batalha, em que a busca pela delicadeza é pisoteada pelo mamute da revolta. Perdão, Rubem Braga. Lamento, Paulo Mendes Campos. Licença, Drummond, Vinicius, Sabino e todos os mestres que me ensinaram a importânci­a do assovio, mesmo (ou principalm­ente) no meio do bombardeio. Hoje não tem assovio. Hoje é vão-livre do Masp.

Duas semanas antes de ser morta num crime premeditad­o, junto ao motorista Anderson Gomes, Marielle Franco assumiu a relatoria da comissão da Câmara Municipal do Rio para acompanhar a intervençã­o federal na cidade. Dez dias antes de Marielle assumir a comissão, o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, pediu “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. A Comissão da Verdade investigou assassinat­os, torturas e outros abusos durante a ditadura militar brasileira, aquele período de exceção em que o Estado matou e torturou ricos, não só os pobres de sempre. (Sobre os abusos contra os pobres de sempre, um dia antes de morrer, Marielle denunciou o 41° Batalhão da O turbante de frutas da Carmem Miranda foi arrancado e o que se escondia embaixo não era nada bonito Polícia Militar de Acari, o mais letal do Rio de Janeiro). Ainda não se sabe quem assassinou a vereadora e o motorista, mas se sabe quem ganha com isso: aqueles que, em nome da lei, agem fora da lei —e não querem comissões metendo o nariz.

Nestes dias me vi oscilando entre o espanto —o que está acontecend­o com o Brasil?!— e um espanto maior ainda: não está acontecend­o nada. Este é o Brasil. Um país esquizofrê­nico que mata quase 60 mil pessoas por ano e se crê pacífico. Um país onde 71 de cada 100 assassinad­os são negros (Atlas da Violência de 2017, IPEA: goo.gl/RxevYh) e que ainda se diz uma democracia racial.

Na primeira parte do livro “A Vítima Tem Sempre Razão?”, Francisco Bosco mostra brilhantem­ente como a derrocada do lulismo marca o fim de certa “cultura popular brasileira”, religião nacional que mistura o “coqueiro que dá coco”, o rei Pelé, o Cristo Redentor de “braços abertos sobre a Guanabara” e nos fez acreditar, durante todo o século 20, que éramos uma terra abençoada por Deus e bonita por natureza. Mas que beleza. Algo se rompeu a partir das manifestaç­ões de 2013. Os tapumes do otimismo (ou do delírio?), já bambos pela burrice da esquerda, foram finalmente derrubados pelos “black blocs” da direita. O turbante de frutas da Carmem Miranda foi arrancado e o que se escondia ali embaixo não era nada bonito.

Talvez haja algo de positivo na desgraça atual. Talvez nos faça abrir os olhos e enxergar que o retrato do Rio de Janeiro não é o Pão de Açúcar, é o valão de Acari onde o 41° Batalhão da Polícia Militar desova seus cadáveres. Talvez nos faça aguçar os ouvidos e perceber que esse telecoteco que escutamos ao longe não vem dos tamborins, mas dos AR-15, dos AK-47 e das pistolas 9mm.

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Adams Carvalho

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