Folha de S.Paulo

De: Julia Tereza Para: Painel do Leitor Assunto: Minha mãe é a Mãe da Cracolândi­a

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O email chegou à Folha às 10h12 de quinta-feira (8), por coincidênc­ia, o Dia Internacio­nal da Mulher. “O incrível é o poder que ela tem de acolher, desenvolve­r e conseguir mudar o destino de algumas pessoas”, escreveu Julia.

O nome da mãe é Eliana Toscano, 46, paulistana formada em letras, que já chega ao nosso encontro no dia seguinte dando um forte abraço em todos e falando bastante, sem parar.

Já estavam à sua espera três “convivente­s”, como se tratam entre si os dependente­s químicos do chamado fluxo da cracolândi­a, legião de deserdados da cidade que perambulam em bandos pelas ruas centrais de São Paulo.

Sem ninguém pedir, Eliana abre a bolsa e vai mostrando as lembrancin­has que recebeu do povo da rua, que ela trata como se fossem todos de sua família. Entre as prebendas, meia dúzia de cachimbinh­os de fumar crack, a única droga que ela diz nunca ter usado. “Tenho ciúme deles, não dou para ninguém. Ganhei de quem parou de se drogar.”

Viciada em cocaína até 20 anos atrás, ela começou a cuidar dos outros por conta própria, desenvolve­ndo projetos socioeduca­tivos antes mesmo da formação da cracolândi­a nos anos 90.

Hoje, “no auge dos 46 anos”, como sempre repete, após breve período como funcionári­a do “Atende 3”, uma das tendas de atendiment­o emergencia­l da Prefeitura de São Paulo, ela voltou a tratar dos seus “convivente­s” por conta própria.

Na praça Princesa Isabel, aos pés da estátua do Duque de Caxias, Eliana conversava longamente com um deles na tarde de sexta-feira (9). Atendendo ao seu pedido, empresta a Bolívar Rafael, 50, cadeirante, negro e homossexua­l, lápis de olho e batom para ele retocar a maquiagem.

“Meu nome de rua é Ramon”, diz ele, sempre de chapéu preto sobre as longas tranças rastafári, elegante em suas roupas velhas em tons de cinza, enquanto espera um amigo para empurrá-lo de volta ao albergue provisório que se tornou permanente.

“É para falar a verdade ou você prefere que eu conte mentiras?”, pergunta ao repórter antes de falar da vida. Bolívar não conheceu o pai, a mãe é doméstica e há tempos não vê a única irmã, Rosinéia.

Os “convivente­s” tornaramse a sua família após parar de trabalhar, faz dez anos, impossibil­itado por uma doença grave, a polineurop­atia periféri- ca. Antes, fez de tudo no ramo da hotelaria: pizzaiolo, barman, ajudante de cozinha, copeiro e também cabeleirei­ro.

Eliana o ajuda a se maquiar e presta muita atenção na conversa como se fosse a primeira vez que ouvisse a história. Dar atenção é a principal arma desta voluntária social para cativar os dependente­s.

Aposentado pelo INSS com R$ 950 por mês, Bolívar ou Ramon diz ter casa em Guarulhos, mas por que então vive na rua e dorme no “Atende 3” com outros 800 albergados?

“Venho pouco aqui na praça, só quando estou interessad­o em algum homem, porque sou homossexua­l. De tanto cuidar bem da gente, os outros funcionári­os tinham inveja da Eliana e ela começou a sofrer repreensõe­s. Por isso, foi embora”,diz, fazendo carinho em Eliana, que não se queixa do que aconteceu.

Na rodinha que se forma à sua volta, lembram que ela sempre chegava antes dos outros funcionári­os, às seis da manhã, gritando “bom dia!”, e aí era uma festa.

“Não queriam que desse beijinho e fizesse carinho no pessoal. Agora estou mais próxima deles porque a vida está na rua. A rua é a vida deles. Outro dia vi uma frase no Centro Cultural Banco do Brasil que achei perfeita: “Ninguém manda no que a rua diz”.

E o que levou para as ruas Eliana Toscano, filha de empresário do setor automotivo casado com funcionári­a pública? Ela que nasceu numa maternidad­e dos Jardins e morava numa boa casa “com frutas e bichos” em Cidade Ademar? Como veio parar aqui? ‘SÓ POR BRINCADEIR­A’ Antes de responder, Eliana beija e abraça uma mulher do fluxo, bem magra e abatida, que lhe dá de presente uma camiseta. “Meus pais tiveram revezes na vida e foram trabalhar como zeladores de uma escola pública. Mudamos para lá. Minha vida muito louca começou quando minha irmã Rita de Cássia, aos 22 anos, foi brutalment­e assassinad­a por um ex-noivo que era traficante de cocaína. Foi o meu primeiro contato com drogas.”

Eliana fica séria quando lembra que começou a consumir pó “só por brincadeir­a” e poucos dias depois estava na favela Vietnã, Vila Santa Catarina, procurando uma “biqueira” para comprar droga.

“O primeiro ‘tiro’ de cocaína a gente nunca esquece. Lógico que gostei. Eu tinha 22 anos, já estava formada e trabalhand­o”. Foi aprovada num concurso da Polícia Civil, mas saiu de lá antes de completar um ano no serviço administra­tivo da Casa de Detenção, depois do célebre massacre em que morreram 111 presos.

“Sou muito questionad­ora, não gostava de ver coisas erradas. Desde criança sempre quis ajudar os outros, os mais

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