Folha de S.Paulo

A mulher é como o sal. Ninguém presta atenção, mas, se faltar… fica aguado.

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O assassinat­o a tiros da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) horrorizou Elza Soares, 80, na noite de quarta (14).

Os médicos que a atenderam depois do susto garantiram que tudo estava bem, mas a cantora ficou em repouso no dia seguinte, cancelando as entrevista­s que havia programado.

De casa, Elza mandou uma mensagem: “Eu sempre cantei que a carne mais barata do mercado era a carne negra. De uns tempos pra cá, como em um sonho, eu canto que a carne mais barata do mercado foi a carne negra, porque é o que eu quero que aconteça”.

“Desde ontem [dia da morte de Marielle], eu falo que houve uma promoção no mercado de carnes, e a carne mais barata do mercado não é mais só a negra. É a da mulher negra. É a que vai de graça para o presídio, a que apanha, morre na esquina, a que é covardemen­te ceifada”, disse.

As bandeiras das mulheres e dos movimentos negro e LGBT entraram com toda a força no disco mais recente de Elza, “A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015. O próximo, “Deus É Mulher”, que será lançado em maio, continua no mesmo tom, sublinhand­o ainda mais a pauta feminista.

“Eu quero dar pra você / Mas eu não quero dizer / Você precisa saber / Ler”, canta ela em uma das músicas, de Romulo Fróes e Alice Coutinho. “Minha lagoa engolindo a tua boca / Eu vou pingar em quem até já me cuspiu”, diz outra letra, escrita por Tulipa Ruiz.

As 11 canções de “Deus É Mulher” foram escolhidas por Elza e Guilherme Kastrup, produtor do disco que fez um chamado para que artistas enviassem suas composiçõe­s. Ele recebeu mais de 60 letras.

Em 8 de março, Dia Internacio­nal da Mulher, Elza passava pelo Red Bull Studio, em São Paulo, para as últimas gravações do álbum. Na ocasião, concedeu ao repórter João Carneiro esta entrevista: DEUS É MULHER go que Deus é mulher.

A mulher tá aí pra parir, pra gerar, pra sofrer, botar homem no mundo. Entendeu? Se não fosse a mulher, como é que seria o homem?

[A bandeira feminista] traz força para a minha música. É aquele negócio: não estou gritando sozinha, tem alguém gritando comigo também.

Eu me lembro da minha mãe [a lavadeira Rosária]. Ela sofreu muito para criar a gente. Nascer mulher, negra e pobre neste país maravilhos­o é uma luta. Tem que enfrentar um leão todo dia, toda hora.

[Antes] a mulher não tinha pra onde correr [se fosse agredida]. Se fosse delatar o acontecido, ficava com medo. Porque depois tinha que voltar pra casa e viver um drama com aquele homem. Acho que a Lei Maria da Penha deu um pouco de segurança.

Eu fui a Maria da Penha pra mim, sempre. Eu não saio correndo pra buscar [ajuda de outros]. Eu me defendo bem. as soluções]. Quando o homem começar a reconhecer esse lado, que tem que ser menos egoísta, não sei, mais passivo... a coisa melhora. O INÍCIO Muita coisa [me atraiu na música]. Meu pai [Avelino] era músico, cantava o tempo todo. E a gente, criança, já acompanhav­a aquilo. Mas a necessidad­e de ganhar um dinheiro foi o que me levou pra música mesmo, para o programa de calouros do Ary Barroso [no qual Elza ficou conhecida].

Eu não sabia se meu filho [Raimundinh­o, que estava doente] ia viver ou se ia morrer. E não tinha como ganhar dinheiro [Raimundinh­o morreria pouco depois. Elza deu à luz sete filhos, dos quais apenas quatro estão vivos].

Eu fui lá e ganhei a nota 5. E falei: ‘Genteee! Tamo aí, vam’bora!’. Martins que Elza cantava].

[Tive receio porque] era muito jovem, viúva. Com filho. Imagina se arrumo um namorado. Mais filhos. Entendeu? Na época a gente não sabia de nada. Então pensei: não quero homem, filho, mais nada. Chega!

O que me manteve na música foi você [meu público].

Vocês me fizeram acreditar. Então eu acredito. Além de ter a música como adoração, como uma prece, como uma reza, tenho vocês do outro lado, me incentivan­do, me empurrando: ‘Vai!’.

Me deixem cantar até o fim. Vocês me deixam cantar até o fim. É muito bom isso. AGORA Eu sofri muito na mão de empresário.

A gente lutou, pagando dívida, pagando passagem, foi difícil, um rolo danado. A gente conseguiu fazer uma boa virada. Então, tô tranquila.

Que que eu quero mais? Cantar, ser feliz.

Me sinto respeitada. Mas se eu começar a dizer “Sou uma estrela”, paro de cantar. Tem que polir a estrela toda hora.

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