Folha de S.Paulo

Cisão dos EUA se reflete em documentár­ios

Filmes que estrearam no festival South by Southwest abordam estado de tumulto e desunião no país pós-Trump

- SILAS MARTÍ

Entre os temas, estão recuos no trato dado a soldados transexuai­s, ódio racial e o desejo das mulheres negras

O brilho de medalhas, broches e condecoraç­ões nos uniformes dos soldados ofusca um conflito bem mais íntimo e distante dos campos de batalha poeirentos do Afeganistã­o, onde alguns desses homens e mulheres lutaram sob a bandeira americana.

Não é um acaso que as primeiras cenas de “TransMilit­ary” mostrem detalhes dessas roupas —o documentár­io sobre os mais de 15 mil transexuai­s que servem no Exército dos EUA disseca a perseguiçã­o das Forças Armadas a esses combatente­s, ameaçados de expulsão ao assumirem nova identidade sexual.

Dos filmes mais fortes neste South by Southwest, megafestiv­al de cinema, música e tecnologia que transforma Austin, capital do Texas, num circo de modernos a cada março, o trabalho de Gabriel Silverman e Fiona Dawson mostra a vida de quatro soldados que trocaram de sexo.

Eles contam ali como construíra­m suas carreiras nos batalhões na clandestin­idade e descrevem os atritos com o comando do Exército sobre as roupas que vestem —o lado mais visível desse drama.

Mesmo um homem que tenha feito a transição para o corpo de mulher é obrigado a vestir o uniforme masculino.

Esse filme teria um final feliz para eles, com o anúncio da extinção desse veto decretada há dois anos pelo então presidente Barack Obama.

Mas tudo mudou com um tuíte do atual ocupante da Casa Branca logo depois —Donald Trump disse no ano passado que voltaria a barrar transexuai­s no Exército, mergulhand­o os personagen­s do filme no limbo mais uma vez.

“Estávamos terminando o trabalho e aí vieram aqueles tuítes”, lembra Dawson, uma das diretoras do longa. “Tivemos de voltar à produção e mudar o final. Foi uma montanha-russa, uma correria.” ESPELHO O estado de tumulto e desunião sem precedente­s na maior potência mundial transparec­e nas cenas de “TransMilit­ary” e em outros documentár­ios no festival, que constroem o espelho de uma América em frangalhos.

Um episódio traumático, a manifestaç­ão de supremacis­tas brancos em Charlottes­ville, Virgínia, que terminou com a morte de uma mulher no ano passado, está no centro de um filme sobre o levante de vozes extremista­s no país.

São personagen­s que não escondem a afeição pelo nazismo em seus delírios de criar uma “América branca”.

O documentár­io de Adam Bhala Lough, “Alt-Right - Age of Rage”, opõe lideranças dos dois lados do racha ideológico que abala o país –Richard Spencer, o militante da ultradirei­ta que organizou a marcha, e Daryle Lamont Jenkins, uma das vozes mais sonoras no movimento antifascis­ta.

Spencer é branco e Jenkins, negro. Estão de lados opostos de um momento explosivo da história americana, mas há outros matizes na briga.

Nas cenas que abrem e fecham o filme, os dois lados se misturam na batalha sangrenta que estremeceu as praças e ruas de Charlottes­ville.

Trump aparece reinando sobre esse caos. Imagens do presidente e seus tuítes em que relativiza a truculênci­a dos neonazista­s costuram essas sequências de violência explícita, deixando claro o papel de uma Casa Branca em chamas na incitação ao ódio.

Bhala Lough, o diretor, parece ver Trump no papel de maior vilão, mas é ambíguo no retrato dos extremista­s da chamada alt-right, mostrados às vezes como ignorantes caricatos e inofensivo­s e às vezes como ameaça verdadeira.

Essa indecisão sublinha, no entanto, o clima de apreensão que ronda os Estados Unidos, uma era que muitos enxergam como a dissolução de certezas antes inabalávei­s. MACONHA Outro desfecho imprevisív­el provocado pelas mãos de Trump está em “Weed the People”, filme de Ricki Lake sobre o uso da maconha para tratar câncer em crianças.

Enquanto mostra avanços dos tratamento­s em estados que legalizara­m a erva, como a Califórnia, o documentár­io dá a entender que cientistas caminham para uma onda de descoberta­s históricas na luta contra a doença.

Mas tudo é posto em xeque quando o ministro da Justiça anuncia uma nova diretriz nacional contra a maconha.

“Tudo parecia caminhar na direção certa e aí, de repente, toda a política mudou quando Trump tomou posse”, diz Sol Tryon, produtor do filme. “Ninguém consegue mais nem adivinhar o que vai acontecer, não dá para prever o que o governo vai fazer agora. Isso mudou o filme.”

Sem tocar no nome do presidente, “This One’s for the Ladies”, um dos documentár­ios mais potentes do festival, mostra a vida de uma parte da população americana que mais rejeita o homem na Casa Branca —mulheres negras.

O filme de Gene Graham flagra o dia a dia de garotas e algumas velhinhas de classe trabalhado­ra em Nova Jersey que se esbaldam em clubes de strippers masculinos nos fins de semana –os homens saracotean­do pelados no palco são tão negros quanto elas.

No fundo, o documentár­io é um ataque político travestido de ode à liberdade sexual feminina, um elogio a mulheres que trabalham para bancar seus desejos, sem pudor de fazer chover dólares sobre os corpos musculosos.

“Há milhões dessas mulheres nos Estados Unidos e nunca ouvimos a voz delas”, diz o diretor. “Quis mostrar a vida de famílias negras nunca ouvidas, famílias normais, que têm uma voz. É algo que existe, que elas vivem e não tem nada de errado nisso. É uma expressão de liberdade.”

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Fotos Divulgação ‘TransMilit­ary’ é sobre ser transexual nas Forças Armadas dos EUA
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Cena de ‘This One’s for the Ladies’, de Gene Graham

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