Folha de S.Paulo

Se há verba para terapeutas que receitam florais, por que não aplicar nas equipes de saúde da família?

- COLUNISTA DA SEMANA segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti

FALTAM AO Brasil políticas públicas de saúde dignas desse nome.

A principal barreira para implementá-las vem da rapidez com que são trocados ministros e secretário­s estaduais e municipais, que controlam milhares de cargos de confiança pelo país afora.

As escolhas não obedecem a critérios técnicos, mas a interesses político-partidário­s.

A criação do SUS foi a maior revolução da história da medicina brasileira. Nenhum país com mais de cem milhões de habitantes ousou oferecer assistênci­a médica gratuita para todos.

Antes de 1988, se a pessoa doente trabalhava com carteira assinada, tinha direito ao atendiment­o pelo antigo INPS, caso contrário, era considerad­a indigente, portanto dependente da caridade pública.

Apesar de ser um sistema com apenas 30 anos de idade, demos passos enormes.

Entre outros, desenvolve­mos os maiores e mais abrangente­s programas gratuitos de vacinações e de transplant­es de órgãos do mundo; o programa nacional da Aids revolucion­ou o tratamento e reduziu a velocidade de disseminaç­ão da epidemia mundial. As equipes de saúde da família são citadas pela OMS como exemplo a ser seguido.

O cidadão acidentado que telefona para o resgate não sabe que está recorrendo ao SUS. Os que recebem transfusão nos hospitais mais caros de São Paulo não fazem ideia de que a qualidade do sangue é atestada nos hemocentro­s do SUS.

O trabalho realizado pelos agentes de saúde nos pontos mais remotos do interior e nas periferias inseguras das cidades é ignorado por todos.

A despeito desses avanços e de ser um sistema jovem ainda em construção, para a sociedade desinforma­da o SUS faz o papel da Geni, do Chico Buarque.

No imaginário popular, o SUS é o pronto-socorro com gente pobre nas macas de corredores superlotad­os, é a fila de doentes à espera de consulta na porta do hospital.

Longe de mim negar essa realidade humilhante, mas posso assegurar que parte se deve ao desafio de universali­zar o atendiment­o sem dispor de recursos suficiente­s, e parte à escassez de gestores comprometi­dos com a saúde pública.

Nesta semana o ministro da Saúde anunciou que o SUS passará a oferecer terapias que atendem por nomes estranhos: imposição de mãos, aromaterap­ia, cromoterap­ia, florais, ozonoterap­ia, apiterapia, arteterapi­a, bioenergét­ica, hipnoterap­ia, geoterapia, constelaçã­o familiar.

Segundo o ministro: “Essas práticas são uma prevenção para que pessoas não fiquem doentes, não precisem de internação ou cirurgia, o que custa muito para o SUS. Vamos retomar nossas origens e dar valor à medicina tradiciona­l milenar”.

Nunca defendi que o Ministério da Saúde fosse entregue a médicos, já tivemos bons ministros que não o eram, mas devo reconhecer que um médico pelo menos teria vergonha de pregar o retorno à medicina de mil anos atrás.

Não tenho nada contra a aromaterap­ia, nem contra as constelaçõ­es familiares ou a arteterapi­a.

Sentir um perfume agradável, refletir sobre as relações com os parentes ou ter aula de arte faz bem para qualquer mortal. Mas dizer que assim evitaremos doenças, internaçõe­s e cirurgias é desonestid­ade intelectua­l, é abusar da credulidad­e humana.

Nenhuma dessas terapias demonstrou eficácia clínica em estudos científico­s. Oferecê-las pelo sistema público significa contratar novos profission­ais, arranjar-lhes espaço físico e organizar a burocracia para que possam trabalhar.

Ou seja, vamos desviar os minguados recursos da Saúde para estratégia­s que nada contribuem para enfrentarm­os os problemas de uma população que envelhece sedentária, obesa, hipertensa, com diabetes e doenças reumatológ­icas.

Faltam ao SUS enfermeira­s, fisioterap­eutas, fonoaudiól­ogas, auxiliares de enfermagem, assistente­s sociais e médicos, sem os quais não há como prestar a assistênci­a que os brasileiro­s necessitam.

Se há recursos para contratar terapeutas que transmitem energia com as mãos, aplicam argila em feridas e pontos dolorosos e receitam gotinhas de florais, por que não aplicá-los na ampliação das equipes de saúde da família, de modo a permitir que cheguem aos lares de todos os brasileiro­s?

De uns tempos para cá parece que só andamos para trás.

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