Folha de S.Paulo

É mais ou menos como você descobrir que o clube do qual é sócio está passando adiante vídeos do vestiário

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

NO FIM de semana passado descobriu-se que o Facebook havia compartilh­ado dados de 50 milhões de usuários com a empresa Cambridge Analytica. A consultori­a britânica, contratada por Donald Trump, usou as informaçõe­s dos perfis para turbinar a campanha do então candidato, em 2016. Os membros do FB se sentiram traídos. É mais ou menos como você descobrir que o clube do qual é sócio está passando adiante vídeos do vestiário —caso vídeos do vestiário pudessem influencia­r uma eleição. “Senhor Boucinhas, temos aqui este seu nu frontal tomando banho de água fria no inverno depois de sair da piscina não aquecida. Se não quiser acabar tão constrangi­do quanto certos detalhes da sua anatomia, vote Levy Fidelix para presidente. Sem mais, Mark Zuckerberg.”

Pois eu digo que Mark Zuckerberg pode passar meus dados para quem quiser e jamais votarei em Levy Fidelix. Não que eu seja assim tão seguro quanto ao meu nu frontal tomando banho de água fria no inverno depois de sair da piscina não aquecida. É que, a se julgar pelas pessoas que o Facebook coloca na minha timeline e produtos que me oferece, os tais algoritmos sabem tanto sobre mim quanto o tio Augusto, que no meu aniversári­o de oito anos, em 1984, me deu de presente uma calculador­a financeira.

A timeline do meu FB é um festival de gatos de pessoas que eu não conheço, bebês de mães que nunca vi, batalhas campais tipo a de um cara que defende a bunda da Anitta no clipe de “Vai Malandra” como o símbolo mais importante do empoderame­nto feminino desde o Nobel de Química para Marie Curie em 1911, e uma moça que enxerga no tremular das mesmas nádegas o maior sinal de submissão feminina desde o silêncio de Eva na expulsão do Paraíso. Entre os miados, chupetas e gritos alheios, vez por outra, surgem os posts dos meus amigos, da minha família e da minha mulher.

E a publicidad­e? Ano passado comprei online o ingresso pra uma peça de teatro e por seis meses não só o FB mas todo site em que eu entrava me oferecia ingressos de teatro —pra mesma peça. (É essa a Inteligênc­ia Artificial que quer tomar o poder?!). No Instagram, que também é do Mark, me oferecem todo dia uma lona que, disposta sobre o capacho, embrulha feito mágica botas enlameadas. Acho que a última vez que tive botas enlameadas nos pés deve ter sido lá por 1984, aos oito anos —e consegui raspar a lama muito bem com o instrument­o adequado, uma calculador­a financeira. Além da lona antilama, o Insta também me sugere uma trava para motos (nunca andei nem de Mobilete) e um incrível cortador de legumes (interessan­te, até, mas tenho abacaxis mais urgentes para descascar).

Talvez algoritmos sejam assim como anjos da guarda ou cupidos. Você pode dar a sorte de vir ao mundo com um atento ou com um desastrado que te abandona, enche a cara, te faz se apaixonar por uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia. Acho que meu algoritmo é do segundo time. Quando eu entrei no FB/ Um algoritmo torto/ Desses que vivem na sombra/ Disse: vai, Antonio! Ser gauche na vida.

“Ser gauche na vida”. Adoro esse trecho do Drummond, mas aposto que se esta crônica cair no FB vou começar a receber propaganda­s assim: “Tinta guache Acrilex 6 cores é na Casa do Artista!”

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Adams Carvalho

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