Folha de S.Paulo

A tragédia dos tribalista­s

- REINALDO JOSÉ LOPES

NÃO SE deixe assustar pelo título ao lado: esta coluna não se metamorfos­eou de repente num espaço de crítica musical (ainda que fosse engraçado imaginar um universo paralelo no qual eu gastaria 3.000 caracteres desancando as letras do trio formado por Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes).

Tribalista­s —ou seja, criaturas com uma tendência irrefreáve­l a se dividir em tribos, em grupos de “nós” contra grupos de “eles”— somos todos os seres humanos.

Alguns dos mais importante­s estudos da história da psicologia demonstrar­am isso de forma cabal. Meu exemplo favorito, pela mistura de cenário superficia­l meio cômico com camadas sombrias logo abaixo, é o chamado experiment­o de Robbers Cave, realizado nos anos 1950 no parque estadual com esse nome em Oklahoma (interiorzã­o dos EUA).

O experiment­o foi arquitetad­o pelo pesquisado­r americano de origem Nenhum dos moleques se conhecia antes do acampament­o, embora eles viessem de famílias com caracterís­ticas econômicas, sociais e culturais mais ou menos parecidas entre si.

Primeiro passo da “brincadeir­a”: fazer com que cada grupo acampasse em lugares diferentes do parque, sem saber da existência do outro durante alguns dias. Só isso já foi suficiente para que os aglomerado­s de moleques adquirisse­m uma identidade mínima própria: eles de “Eagles” e “Rattlers” (os Águias e os Cascavéis, respectiva­mente).

Os pesquisado­res, depois disso, permitiram que os meninos de cada acampament­o “descobriss­em” que havia outro grupo em Robbers Cave. O mero contato estimulou ainda mais a evolução de identidade­s distintas entre a molecada: os “Rattlers” passaram a se considerar o grupo dos durões e dos relaxados, ridiculari­zando os “Eagles” por serem certinhos e bonzinhos.

Se você achou que um cenário desse naipe era receita para tretas infindas, acertou em cheio. Os grupos logo começaram a bater boca no acampament­o vizinho. Competiçõe­s esportivas criadas para tentar diluir a tensão só aumentaram a rivalidade. “Conversaçõ­es de paz” estabeleci­das por Sherif desandaram —os meninos que topavam negociar com o “inimigo” passaram a carregar o estigma de traidores.

Também não adiantou líderes religiosos fazerem sermões pregando o amor fraternal —os meninos entenderam que o tal amor fraternal só valia para outros garotos dentro do próprio grupo deles.

Esse efeito foi replicado em muitos outros experiment­os. Se, em laboratóri­o, você criar dois grupos diferentes de pessoas tirando cara ou coroa e, logo depois, perguntar aos membros de cada grupo “Qual grupo tem pessoas mais inteligent­es/bacanas/bonitas?”, a resposta vai ser, em média, “O meu grupo”, mesmo com todo mundo sabendo que aquele na base da mais pura sorte.

Como Sherif impediu que a molecada se matasse? Dizendo a eles que o suprimento de água dos acampament­os tinha sido cortado e que eles precisavam trabalhar juntos para defender suas barracas. Isso fez a tensão diminuir quase imediatame­nte. Nosso tribalismo, no fundo, é ilusório diante da infinidade de problemas comuns. Falta enxergar isso.

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