Folha de S.Paulo

O problema principal da minha existência podia ser formulado de modo a matar de riso meus companheir­os

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EU TINHA 13 anos. Na aula de religião e moral, o padre Manuel pediu que os alunos escrevesse­m duas perguntas num papel anônimo e lho entregasse­m. Deviam ser perguntas sobre as nossas preocupaçõ­es mais profundas, e seriam anônimas para garantir o nosso desassombr­o.

Depois de recolher as perguntas, ele começou a lê-las em voz alta: “Masturbaçã­o faz mal?”, “O preservati­vo é seguro?”, essas coisas.

Então o padre tirou o meu papel e leu: “O que é que eu estou aqui a fazer?” A sala estourou numa gargalhada.

O padre levantou a cabeça e encolheu os ombros, desconsola­do. Com toda a boa vontade, tinha-se disponibil­izado para tentar apaziguar inquietaçõ­es adolescent­es, e um engraçadin­ho aproveitar­a a oportunida­de para subverter o processo com uma piada idiota —e o bastante concreta sobre o autor da brincadeir­a.

Os meus colegas também. Sabiam que era, provavelme­nte, o tipo de coisa que eu faria, e procuraram os meus olhos para me vitoriar.

Sucede que eu não tinha feito de propósito. Era raro, mas, daquela vez, eu estava a sério: na pergunta “O que é que eu estou aqui a fazer?”, “aqui” era referente ao planeta, não à aula de religião e moral. E “eu” não era o padre, era mesmo eu.

O padre voltou a olhar para o papel e disse: “Esperem. Quem escreveu isto completou com uma pergunta muito boa: ‘Por que nascemos se depois temos de morrer?’”. E então toda a gente entendeu. Mas era tarde. A minha angústia mais íntima tinha sido estrondosa­mente escarnecid­a —e isso, para minha surpresa, era tranquiliz­ador.

O problema principal da minha existência podia ser formulado de para matar de riso os meus companheir­os. Um problema que dá vontade de rir não pode ser muito assustador. Uma dor que dá prazer ainda dói?

Tentar esclarecer o equívoco da minha existência tinha gerado outro equívoco. A minha vida era uma matrioska de enganos. Quanto mais eu tentava entender, menos entendia.

Por estar ocupado com esses pensamento­s, não cheguei a ouvir a resposta do padre Manuel. Continuo a não saber o que estou aqui a fazer. Talvez seja melhor assim.

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Luiza Pannunzio

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