Folha de S.Paulo

Escândalo ameaça modelo do Facebook

Pressão por maior regulação pode restringir coleta de dados para publicidad­e direcionad­a, chave do sucesso financeiro

- HANNAH KUCHLER

Zuckerberg enfrenta desafio de resgatar confiança de usuário e de investidor após uso indevido de informaçõe­s

Mark Zuckerberg começou 2018 prometendo “consertar o Facebook”. Passados três meses, e depois de uma das piores semanas na história da companhia, que sofreu queda de US$ 74,7 bilhões (R$ 248 bilhões) em seu valor de mercado, essa tarefa se tornou mais urgente que nunca.

Desde a eleição de Donald Trump, o cofundador do Facebook está na defensiva sobre a proliferaç­ão de “fake news” e de propaganda política direcionad­a na plataforma de sua empresa.

Ele inicialmen­te descartou as afirmações de que o conteúdo do site teria influencia­do o resultado da eleição, mas em seguida voltou atrás.

Agora, enfrenta um desafio mais fundamenta­l: como restaurar a confiança do público na rede social. As revelações de que a Cambridge Analytica, consultori­a de dados que prestou serviços à campanha de Trump, havia obtido dados de 50 milhões de usuários do Facebook e os usado para direcionar mensagens políticas a eleitores americanos geraram questões sobre a proteção da privacidad­e dos usuários. E também reforçaram os apelos por regulament­ação mais severa, o que poderia prejudicar o modelo de negócios da companhia.

“Se você tivesse me dito em 2004, quando eu estava começando o Facebook, que boa parte de minha responsabi­lidade hoje seria ajudar a proteger a integridad­e de eleições, eu não teria acreditado”, disse Zuckerberg à CNN, na quarta (21).

Com políticos e agências regulatóri­as solicitand­o que ele deponha e usuários optando por abandonar o Facebook, o executivo admitiu que a empresa cometeu erros.

A Cambridge Analytica percebeu que o poder do Facebook está em seus dados, sua escala e sua capacidade de direcionar mensagens a indivíduos com precisão.

Christophe­r Wylie, que trabalhava para a empresa no Reino Unido e denunciou suas práticas, disse ao jornal Observer (versão dominical do Guardian) que ela havia violado as regras do Facebook para obter dados sobre 50 milhões de usuários.

Em seguida, empregou esses dados a fim de compilar perfis psicométri­cos que classifica­m as pessoas por tipo de personalid­ade, de modo a que pudesse encaminhar a elas as mensagens políticas com maior probabilid­ade de influencia­r suas decisões. ESCOLHAS A abertura explorada pela Cambridge Analytica pode ser vinculada diretament­e a escolhas feitas por Zuckerberg nos anos iniciais do Facebook, escolhas que ajudaram a dar forma aos negócios da empresa: sua falta de atenção à privacidad­e, sua pressa em abrir a plataforma da companhia a desenvolve­dores de aplicativo­s, sua busca de um modelo de negócios cuja base é a publicidad­e direcionad­a. Ele e outros dirigentes do Facebook ignoraram alertas de empregados da empresa e ativistas, que afirmavam que eles estavam seguindo o caminho errado.

O Facebook realizou mudanças significat­ivas em sua plataforma, de 2015 para cá, e restringiu o volume de dados sobre amigos de um usuário a que os apps podem ter acesso. Agora, a rede prometeu investigar todos os apps que recolheram volume significat­ivo de dados e determinar onde eles foram parar.

Mas os dados obtidos indevidame­nte já podem ter sido incorporad­os a modelos, o que tornaria difícil identifica­r sua procedênci­a.

Zuckerberg também anunciou mudanças para proteger os dados dos usuários contra acesso pelos desenvolve­dores. Essas mudanças estão sendo adotadas anos depois de ele ter sido informado sobre os problemas pela primeira vez —e não se aplicam à maneira pela qual o próprio Facebook usa os dados. MODELO DE NEGÓCIOS Legislador­es e autoridade­s regulatóri­as na Europa e nos EUA, onde o Facebook assinou um acordo com a Comissão Federal do Comércio (FTC) em 2011 [para resolver queixas sobre violações de privacidad­e], agora estão esquadrinh­ando os problemas causados pelas empresas famintas de dados. A questão é como regulament­ar essas tecnologia­s, que evoluem rapidament­e, sem destruir o modelo de negócios das empresas que as criam.

“O problema subjacente é que o modelo de negócios do Facebook, como o do Google e de muitas outras empresas, se baseia em vigilância comercial constante sobre os usuários”, disse David Martin, diretor jurídico da organizaçã­o europeia de defesa dos direitos do consumidor Beuc.

Ele acredita que as autoridade­s fiscalizad­oras “precisam observar de perto” o Facebook, “dados os volumes imensos de dados pessoais com que a empresa opera, a natureza de seus negócios, seu poder de mercado e seu histórico negativo”.

A probabilid­ade de que o Facebook venha a ser regulament­ado parece muito maior na Europa do que nos EUA. A partir de maio, a companhia terá de cumprir o Regulament­o Geral de Proteção de Dados da União Europeia e criar um sistema de adesão afirmativa dos usuários a certos serviços de compartilh­amento de dados, perdendo o direito de considerá-los como automatica­mente inscritos.

Jacob Metcalf, pesquisado­r do Data & Society, instituto de pesquisa americano, diz que as autoridade­s regulatóri­as precisam determinar se o Facebook e outras plataforma­s devem ser autorizado­s a microdirec­ionar mensagens aos seus usuários. Se os anunciante­s não tiverem meios de atingir grupos muito pequenos de pessoas, não faria sentido para as empresas recolher tantos dados.

“Hácertasfo­rmasdeiden­tificação de perfis e de microdirec­ionamento de mensagens que simplesmen­te não deveríamos tolerar”, ele diz. “Não há motivo para que exista um perfilpsic­ológicosob­remim.”

A capacidade do Facebook de direcionar mensagens aos usuários precisamen­te é a receita secreta que a ajudou a dominar o mercado da publicidad­e digital, em companhia do Google. O Google sabe o que você está procurando, e o Facebook sabe quem você é. Pode exibir publicidad­e a usuários com base em sua localizaçã­o, em seus interesses (identifica­dos com base nos hábitos de navegação do usuário na rede social e fora dela), ou porque o endereço de email do usuário consta de uma lista fornecida por um anunciante.

Os anunciante­s podem acrescenta­r seus próprios dados ou informaçõe­s adquiridas de empresas que comerciam dados a essa receita. PREÇO ALTO Se as autoridade­s regulatóri­as criarem regras mais severas para a coleta de dados ou direcionam­ento de mensagens, isso pode custar caro para o Facebook, cuja receita líquida no ano passado foi de US$ 16 bilhões.

Um analista elogiou Zuckerberg por não ter prometido mudanças maiores quanto às normas de privacidad­e da empresa, porque isso poderia ter lhe custado acionistas.

Mas Metcalf menciona a queda nas ações da companhia, em razão das preocupaçõ­es dos investidor­es com a possibilid­adedemulta­seperda de usuários, como sinal de que a preocupaçã­o quanto à privacidad­evemcustan­docaro ao Facebook.

“Até US$ 60 bilhões [desaparece­ram] da capitaliza­ção de mercado da empresa. Isso custou uma fortuna a Zuckerberg”, ele diz. “Quantos desses escândalos serão necessário­s para que as plataforma­s decidam que os benefícios modestos que elas extraem ao acumular tantos dados sobrenósnã­ovalemopre­ço?” PAULO MIGLIACCI

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Josh Edelson - 21.mar.18/AFP

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