Folha de S.Paulo

De volta ao século 20

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RIO DE JANEIRO - Há dois anos, flanando por Dublin, na Irlanda, pensei ter sido devolvido de repente ao século 20 ou despachado para uma dimensão paradisíac­a do espaçotemp­o. À minha frente, numa rua qualquer, havia uma Tower Records —uma filial da cadeia de megalojas de discos, a maior do gênero no século e cujo templo máximo era a do Village, em Nova York. Mas, em 2004, a Tower decretara falência e, em 2006, fechara as portas, tanto em Nova York quanto em Londres, Tóquio, Buenos Aires. E eis que me aparecia uma em Dublin.

Entrei empolgado, como já fizera em muitas Towers pelo mundo, esperando encontrar a insuperáve­l oferta de CDs, DVDs, livros, partituras e equipament­os, sem falar nas edições exclusivas de discos históricos, até em vinil, mandados prensar pela própria Tower. Mas não havia nada disso. Pelo estoque, composto da produção mais vulgar e vagabunda possível, senti-me numa banca gigante de camelô especializ­ada em DVDs piratas. O logotipo da Tower na fachada era um reles leasing, indigno de sua história.

Há menos de 20 anos, as lojas de discos eram pontos imprescind­íveis das grandes cidades. Nelas concentrav­am-se pessoas que gostavam de música, detentoras de uma cultura que ajudava a lubrificar a sociedade, a torná-la mais adulta, amorosa e humana. Uma loja de discos não comportava brigas políticas ou ideológica­s. Nela, todos eram irmãos em Mozart, Cole Porter, Tom Jobim, Duke Ellington ou Paul McCartney.

Enquanto a música dependeu de suportes físicos, precisou de quem os vendesse. Quando ela passou a vir não sei de onde, as lojas perderam a razão de existir e a maneira de consumi-la mudou. A música, hoje, é uma experiênci­a individual, não mais coletiva. Pior para a música e para nós.

Russ Solomon, fundador da Tower, morreu outro dia na Califórnia. Tinha 92 anos. MARCUS MELO

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