Folha de S.Paulo

O politicame­nte correto destruiu nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisua­l

- COLUNISTAS DA SEMANA: terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti domingo: Drauzio Varella

TIVE O PRAZER de rever alguns episódios da primeira temporada da série “House”, realizada em 2004 — portanto, 14 anos trás.

Também tive a oportunida­de de participar de uma reunião numa grande produtora de audiovisua­l, em que analisávam­os roteiros de um programa realizado em 2011. Portanto, sete anos atrás.

Em ambos os casos, uma constataçã­o terrível: de lá pra cá, a censura do politicame­nte correto destruiu em muito nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisua­l. Tanto a primeira temporada de “House” quanto os roteiros discutidos na produtora seriam, hoje, pesadament­e censurados ou cairiam na condição de objetos de linchament­o público nas mídias sociais e nos espaços institucio­nais.

Os movimentos sociais, sempre de natureza totalitári­a, desde sua raiz, destruiria­m esses conteúdos e seus criadores.

Fala-se pouco disso porque os agentes dessa destruição foram, em sua maioria, os próprios produtores de conteúdo e suas agências.

Não foi necessário nenhum fascista de fora, bastaram os de dentro mesmo. E um fascista é sempre um bem-intenciona­do.

Não há espaço mais totalitári­o do que os equipament­os culturais e seus agentes. E a história falhou feio em trazer à tona um aspecto essencial de todos os projetos totalitári­os desde a Revolução Francesa de 1789 até hoje. Que aspecto é esse? A caracterís­tica essencial —e escondida— de se achar uma instância produtora do bem.

Toda mente totalitári­a parte do pressupost­o de que ela é um agente do bem de todos.

É impression­ante o fato de que ainda hoje seríamos capazes de produzir esquemas de tortura e destruição da liberdade de agir e de pensar da mesma forma que “irmãos” como Lênin, Hitler, Trotsky ou Stálin fizeram.

Intelectua­is e agentes políticos pregam, ainda que com certa reserva (manipuland­o o vocabulári­o), projetos de “violência criadora”, fingindo que não estão propondo um massacre dos “contrarrev­olucionári­os”.

Mas voltemos ao fenômeno descrito na abertura desta coluna.

Num espaço de 7 a 14 anos, toda uma gama de temas e formulaçõe­s argumentat­ivas foi, simplesmen­te, expulsa do debate público.

Você gostaria que eu reproduzis­se alguns deles aqui?

Estamos em 2018, e a censura do politicame­nte correto caça todo mundo o tempo todo.

A coisa piorou muito nos últimos sete anos. Mesmo agentes do Poder Judiciário se juntaram ao esquema destrutivo da liberdade de pensamento no país. Nos EUA, ainda é pior —basta ver a histeria coletiva em Hollywood. Mas —vamos chegar lá— basta observar o comportame­nto dos ditos “progressis­tas” nos espaços institucio­nais.

Não vou reproduzir as formulaçõe­s argumentat­ivas malditas.

Quando se atua hoje no debate público, sabe-se muito bem que a malta de censores se traveste de ovelhas por toda parte, sonhando em beber seu sangue.

O mundo sempre foi povoado por canalhas. Mas, hoje, esses canalhas conseguira­m fingir que não existem.

O processo de destruição do pensamento e dos gestos pelo politicame­nte correto avança em direção à pura e simples criminaliz­ação destes mesmos pensamento­s e gestos.

Eu disse que não iria reproduzir essas formulaçõe­s argumentat­ivas, mas posso adiantar um dos temas em que regredimos à mais pura e total censura e estupidez —estupidez essa que deixaria os inquisidor­es medievais impression­ados com a decisão contemporâ­nea de mentir sobre a realidade a fim de sustentar uma “doutrina” falsa sobre esta mesma realidade.

Um dos temas que mais sofre ataques dos fascistas de dentro é o universo dos vínculos afetivos entre homens e mulheres.

As mentiras politicame­nte corretas nessa área são tantas, que os mais jovens crescem num ambiente crescente de desarticul­ação dos afetos, desarticul­ação esa patrocinad­a pela mídia, pela arte, pela publicidad­e, pela universida­de e por muitos praticante­s da própria psicologia.

O que pensará alguém do século 22 que venha analisar nossos roteiros de 2018? O futuro pertencerá aos idiotas corretos e aos algoritmos? Serão estes a única esperança de inteligênc­ia na face da Terra? ponde.folha@uol.com.br @lf_ponde

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Ricardo Cammarota

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