Recrutas relatam barbárie em operação militar de 1970
FOLHA
“Soldados do Araguaia” tem um bom princípio: observar a campanha militar de combate à guerrilha rural que o PC do B instaurou no começo dos anos 1970 não do ponto de vista dos guerrilheiros nem dos oficiais do Exército, mas de um grupo de recrutas intimados a participar da campanha — as tropas oficiais— graças a seu conhecimento da intrincada região.
A campanha deu-se em torno do rio Araguaia, no centro-norte do Brasil. Ali o PC do B plantou militantes desde o final dos anos 1960, com o objetivo de misturarse à população local e dar início a uma guerrilha rural inspirada pelo que fez Mao Tse-Tung na China.
Não se sabe muito mais sobre o aconteceu, exceto que a guerrilha foi aniquilada ainda na primeira metade dos anos 1970. Sabe-se ainda que o Exército procurou ocultar e/ou apagar todas as marcas da iniciativa, secretíssimo segredo de Estado. E, a julgar pelo depoimento dos então jovens recrutados em Marabá, Pará, trata-se de medida providencial e uma das raras decisões racionais dessa história, aparentemente, cheia de insanidades.
Em “Soldados do Araguaia” temos um filme com imagens poucas e quase nunca interessantes, o que é compensado por uma banda de som que não será exagero chamar de explosiva.
O que dizem os ex-recrutas? Eles falam de coisas como sacos de cabeças cortadas e de mãos decepadas. Contam sobre voos de helicóptero que deviam levar prisioneiros a Brasília, mas que regressavam alguns minutos depois (mais tarde fica subentendido que teriam jogado os prisioneiros no ar).
Revelam que eles próprios sofreram tortura, sendo forçados a coisas tais como comer lama —com o duvidoso objetivo de se imunizarem contra a dor do outro, na hora em que tivessem, eles, de se tornar torturadores.
Em poucas palavras: coisas de revirar os estômagos mais resistentes, mas que lançam dúvidas não só sobre a operação (sobre a qual não existem mais que sombra e incerteza), como sobre o caráter daqueles que a conduzem (sádicos de primeira, a se crer nos depoimentos).
Claro, sempre se poderá argumentar que tais depoimentos foram montados por exímios atores. Ou que os exrecrutas —que, segundo eles, nunca receberam baixa nem documento de participação na campanha— narram meras alucinações.
Nada disso é impossível. Até porque o filme detém-se sobre um número restrito de personagens de Marabá (um dos locais de recrutamento nessa guerra que se desenvolveu às margens do rio Araguaia) e não se aventura entre os outros habitantes do local, que seriam testemunhas mais distantes, e não menos fidedignas, de tais acontecimentos.
O fato é que o horror dos depoimentos, o tipo de barbárie praticado, segundo os ex-recrutas, pelos militares não apenas contra os guerrilheiros mas contra inúmeros civis, continuará a assombrar a memória brasileira até que alguém se disponha a expor a documentação existente e mostrar o que de fato ocorreu naquela campanha.
Nesse sentido, apesar das limitações da imagem e das dúvidas que se podem colar ao discurso dos recrutas (serão loucos? Militantes remanescentes do PC do B? Atores bem treinados para fins subversivos?), o próprio silêncio oficial —que atravessa já uma pilha de governos democráticos— acaba por tornar o documentário relevante. DIREÇÃO Belisário Franca PRODUÇÃO Brasil, 2017, 12 anos QUANDO em cartaz AVALIAÇÃO bom