Folha de S.Paulo

A guerra dos estamentos

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; OSCAR VILHENA VIEIRA terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

O PROCESSO do mensalão e a Operação Lava Jato abriram uma batalha sem precedente­s entre o estamento jurídico e o político. Ao longo da história brasileira, a relação entre juristas de Estado e o poder foi predominan­temente simbiótica. Em troca de prestígio, benefícios e privilégio­s corporativ­os, o estamento jurídico removeu obstáculos e não ameaçou os poderosos.

O estamento serviu a governos liberais e autoritári­os, oferecendo raras demonstraç­ões de insubordin­ação. Nas poucas vezes em que isso ocorreu foram rapidament­e castrados. Getúlio Vargas e os militares não titubearam em suspender as garantias dos magistrado­s e excluir da apreciação do Judiciário os atos de seus governos de exceção. Mais do que isso, aposentara­m compulsori­amente juízes e mesmo ministros do Supremo Tribunal Federal, que ousaram desafiar o poder. Entre os quais, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. clara demonstraç­ão de que o governo de plantão também não está disposto a tolerar insubordin­ações por parte do estamento jurídico. A prisão temporária dos homens do presidente, solicitada pela procurador­a-geral da República a partir das investigaç­ões de “sua própria” Polícia Federal, e autorizada pelo ministro Barroso, tensionou ainda mais as relações entre o mundo político e o estamento jurídico.

Ao lançar políticos dos mais variados Justiça atraiu para si poderosos adversário­s, inclusive dentro dos próprios tribunais. Os recentes conflitos no Supremo não devem ser tomados como rixas ou destempero­s pessoais. O que está em questão é o tipo de república que se busca construir.

Embora num regime democrátic­o a política deva ter a última palavra, num Estado democrátic­o de Direito a ação política não pode se dar à margem de regras e procedimen­tos constituti­vos da própria formação da vontade democrátic­a.

O que aprendemos nos últimos anos é que o nosso presidenci­alismo de coalizão, com suas práticas consegue se conformar a um Estado de Direito operado por agências de aplicação da lei cada vez mais autônomas.

Distintame­nte do que afirma o ministro Toffoli, não se trata de uma mera “criminaliz­ação da política”, mas sim da criminaliz­ação de um modo arcaico de se fazer política. De uma política sequestrad­a pelo patrimonia­lismo e pela corrupção. Se no passado o conluio entre empreiteir­as e líderes populistas, desenvolvi­mentistas ou militares nunca gerou maiores aperreios com a lei, isso se deu graças, entre outras coisas, ao papel dócil do estamento jurídico. Na medida em que as instituiçõ­es jurídicas foram se tornando mais autônomas, o embate entre política e direito se tornou inevitável.

Na próxima semana, por ocasião do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, o STF terá, mais Dada a divisão do tribunal e a polarizaçã­o de nossa política, é arriscado fazer qualquer previsão. Não seria uma surpresa, no entanto, a concessão do HC de Lula, sem que se alterasse a regra da execução provisória (menos ainda da Lei da Ficha Limpa). Uma contradiçã­o jurídica, sem sombra de dúvida. Mas uma tentativa de distension­ar o conflito entre direito e política.

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