A guerra dos estamentos
O PROCESSO do mensalão e a Operação Lava Jato abriram uma batalha sem precedentes entre o estamento jurídico e o político. Ao longo da história brasileira, a relação entre juristas de Estado e o poder foi predominantemente simbiótica. Em troca de prestígio, benefícios e privilégios corporativos, o estamento jurídico removeu obstáculos e não ameaçou os poderosos.
O estamento serviu a governos liberais e autoritários, oferecendo raras demonstrações de insubordinação. Nas poucas vezes em que isso ocorreu foram rapidamente castrados. Getúlio Vargas e os militares não titubearam em suspender as garantias dos magistrados e excluir da apreciação do Judiciário os atos de seus governos de exceção. Mais do que isso, aposentaram compulsoriamente juízes e mesmo ministros do Supremo Tribunal Federal, que ousaram desafiar o poder. Entre os quais, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. clara demonstração de que o governo de plantão também não está disposto a tolerar insubordinações por parte do estamento jurídico. A prisão temporária dos homens do presidente, solicitada pela procuradora-geral da República a partir das investigações de “sua própria” Polícia Federal, e autorizada pelo ministro Barroso, tensionou ainda mais as relações entre o mundo político e o estamento jurídico.
Ao lançar políticos dos mais variados Justiça atraiu para si poderosos adversários, inclusive dentro dos próprios tribunais. Os recentes conflitos no Supremo não devem ser tomados como rixas ou destemperos pessoais. O que está em questão é o tipo de república que se busca construir.
Embora num regime democrático a política deva ter a última palavra, num Estado democrático de Direito a ação política não pode se dar à margem de regras e procedimentos constitutivos da própria formação da vontade democrática.
O que aprendemos nos últimos anos é que o nosso presidencialismo de coalizão, com suas práticas consegue se conformar a um Estado de Direito operado por agências de aplicação da lei cada vez mais autônomas.
Distintamente do que afirma o ministro Toffoli, não se trata de uma mera “criminalização da política”, mas sim da criminalização de um modo arcaico de se fazer política. De uma política sequestrada pelo patrimonialismo e pela corrupção. Se no passado o conluio entre empreiteiras e líderes populistas, desenvolvimentistas ou militares nunca gerou maiores aperreios com a lei, isso se deu graças, entre outras coisas, ao papel dócil do estamento jurídico. Na medida em que as instituições jurídicas foram se tornando mais autônomas, o embate entre política e direito se tornou inevitável.
Na próxima semana, por ocasião do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, o STF terá, mais Dada a divisão do tribunal e a polarização de nossa política, é arriscado fazer qualquer previsão. Não seria uma surpresa, no entanto, a concessão do HC de Lula, sem que se alterasse a regra da execução provisória (menos ainda da Lei da Ficha Limpa). Uma contradição jurídica, sem sombra de dúvida. Mas uma tentativa de distensionar o conflito entre direito e política.