Limbo de Saunders está mais próximo do purgatório
FOLHA
O ano é 1862. Num momento em que os Estados Unidos convulsionam com a Guerra Civil, morre, de febre tifoide, o filho de 11 anos do então presidente Abraham Lincoln.
Com sua construção sui generis, “Lincoln no Limbo” —um Lincoln que pode ser tanto o pai quanto o filho— se revela aos poucos, alcançando a plenitude nas últimas linhas.
O limbo em que o pequeno Willie Lincoln se encontra está mais próximo da ideia do purgatório cristão do que da concepção budista do pós-morte, como sugeriria o título original do romance.
Com um sincretismo autorizado pelo registro literário, tudo indica que a etapa seguinte não será o renascimento, mas a eternidade.
Lincoln-pai também se vê em um limbo, mas de luto e indecisão. Se a Guerra Civil prosseguir, milhares de jovens terão o mesmo destino de Willie.
Para fornecer a dimensão aproximada do que deve ter sido o impasse de Lincoln, Saunders insere excertos de jornais e livros —reais ou não— que retratam e avaliam a figura e o governo do ex-presidente.
Esses excertos são contraditórios, revelando diferentes pontos de vista sobre os contextos e situações do livro. O mesmo acontece no limbo em que está Willie: cada espectro tem uma voz única e eles Esses espectros raramente chegam a um consenso, mas são capazes de unir forças por uma causa comum.
Um dos momentos mais bonitos do livro mostra o alcance e o poder das vozes que, juntas, tentam persuadir Abraham Lincoln a fazer o que é necessário —no caso, deixar o filho partir.
Enquanto os personagens-espectros do limbo metafísico se veem às voltas com as consequências das escolhas que fizeram em vida, Lincoln-pai, em um daqueles momentos decisivos de uma trajetória, se prepara para as consequências futuras.
“Como eu poderia (ou qualquer um de nós) ter feito outra coisa senão aquilo que, na época, realmente fizemos?”, pergunta um espectro.
Estamos unidos pelo sofrimento, é o que conclui um “destruído, perplexo, humilhado, diminuído” Abraham Lincoln.
O presidente se torna “menos rígido por causa [da perda do filho]”, ao mesmo tempo em que se faz “bastante poderoso”, capaz de sentir empatia e comiseração.
Com os recursos e perspectivas adotados por Saunders, é como se as duas imagens se encontrassem: a do grande homem e a do homem de carne e osso.