Estado Islâmico ataca militares na região norte
A fotografia do jovem homem de terno e gravata, cabelos bem penteados e com um leve sorriso no rosto, está impressa em um papel brilhante de boa qualidade.
Está limpa, nova, sem manchas e parece não fazer parte do cenário de destruição apocalíptica que se tornaram as estreitas vielas da centenária cidade antiga de Mossul, último reduto dos combatentes do Estado Islâmico naquela que era capital “de facto” do califado.
O jovem da foto se chama Abdulhamad, me conta sua mãe, e está desaparecido há quase um ano, desde quando as bombas eram despejadas sem parcimônia pela aviação americana e pela artilharia iraquiana. “Estávamos no porão há semanas, ficamos sem água e ele foi buscar nas bombas que ainda funcionavam”, diz Fatimah Saeed, a mãe do jovem sorridente. Ele nunca mais voltou.
Fatimah voltou à cidade antiga de Mossul há um mês, quando soldados garantiram que a região de sua casa estava livre de minas e bombas que não haviam explodido.
Nos oito meses em que passou em um campo de refugiados, Fatimah ouviu diversas histórias sobre o destino de seu filho. Uns dizem que ele parou na casa de vizinhos durante um bombardeio e dois mísseis disparados por aviões destruíram a casa e mataram a todos.
Outros contaram a ela que o Estado Islâmico o fez de prisioneiro quando ele tentava fugir. Mas a versão em que ela mais acredita é de que o filho foi visto em um campo de prisioneiros controlado pelos americanos no que sobrou do aeroporto de Mossul.
Desde que chegou por aqui, ela passa os dias caminhando pelas vielas repletas de escombros, casas destruídas e partes de corpos com a foto em mãos. Tem a esperança de que alguém reconheça o filho e a ajude a encontrálo. “Ele era um homem bom, jamais fez mal a ninguém”.
Fatimah é regra e exceção na tragédia de Mossul. Como ela, muitos perderam parentes, amigos e conhecidos nos meses finais da guerra contra o Estado Islâmico, quando o exército iraquiano fez um cerco contra a cidade antiga de Mossul e aviões despejaram milhões de toneladas de bombas sobre a área densamente povoada. Durante o ataque final, ao menos 200 mil pessoas estavam aqui.
A defesa civil de Mossul estima que cerca de 5 mil corpos de civis ainda estejam sob os escombros das casas atingidas pelos ataques aéreos. O número, como quase todos no Iraque, é um chute. FOLHA,
Menos de quatro meses depois de o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, declarar que o Iraque estava livre do Estado Islâmico, uma série de ataques da facção nos arredores de Mossul e Kirkuk (norte do país) mostra que os extremistas não foram de todo derrotados.
Só em março, o grupo matou ao menos cem integrantes das forças de segurança. No ano, são mais de 200 vítimas. A estratégia atual é centrar fogo em alvos militares.
Na última semana, o EI mirou áreas rurais, onde há pouca presença do Exército iraquiano e o controle de reconhecimento aéreo da coalizão internacional diminuiu.
Diante dessa ofensiva, o premiê iraquiano reconheceu que a guerra contra a facção não terminou e prometeu enviar reforços ao norte.
Em Mossul, segunda maior cidade iraquiana, os serviços de inteligência vêm ampliando os esforços para detectar células adormecidas. Prisões são frequentes, mas, como reconhece o general responsável pela operação militar no norte do Iraque, Nahim al-Jabouri, ainda existem milhares de integrantes do EI na cidade.
Jabouri liderou a campanha que varreu o grupo de Mossul em julho de 2017 e agora tenta evitar a reversão do quadro nesse bastião sunita de um Iraque majoritariamente xiita. “As coisas são diferentes agora. As forças de segurança respeitam a população, o sectarismo já não é parte dessa realidade”, diz.
Quem anda por Mossul tende a discordar. A cidade ainda está repleta de bandeiras xiitas, com imagens de nomes-chave da corrente majoritária ou elogios ao imã Ali. Muitos nativos se queixam da ostentação.
Por outro lado, as acusações de tortura, assassinatos e extorsão por parte das forças de segurança, comuns no período que antecedeu a com até cinco ou seis outras famílias e permanecer nos campos de refugiados.
Até agora, Mossul recebeu apenas US$ 250 mil (R$ 830 mil) do fundo criado para reconstruir os locais atingidos pela guerra contra o EI.
“Sou militar, mas sei que a força não vai resolver a questão. Não resolveu antes. Tínhamos 30 mil homens aqui, e veja o que aconteceu”, diz Jabouri.
Ele aponta empregos e melhoria na qualidade de vida como as melhores armas contra o Estado Islâmico. “O que essa cidade precisa é de fábricas, investimento, modernização da agricultura”, lista.
Nas ruas abarrotadas do lado leste da cidade, poupado de ataques aéreos, há bazares por toda parte. Homens tomam as calçadas a fim de vender qualquer coisa. Na falta de emprego, o comércio tem sido a saída para muitos. “Pode contar para o seu país que nos abandonaram de novo”, diz um deles, que vende laranjas. (YB)
Ao contrário de Fatimah, quase nenhuma das 5 mil pessoas que voltaram a viver nas ruínas da cidade antiga de Mossul tem esperança de encontrar seus parentes. Todos sabem que sob as casas e prédios destruídos, estão centenas, milhares de pessoas.
“Estão todos sob esse monte de entulho, eu não entendo porque o exército não veio aqui e não nos tirou. Eles simplesmente bombardearam tudo e todos”, diz Muqtab Aziz, senhora que decidiu voltar a viver em sua casa semidestruída, com a fachada protegida por toras para que não caia.
Ao lado, viviam sua irmã, o marido, seis filhos e quatro netos. “Foram três mísseis, disparados pelos aviões. Estão todos aí, não vieram ainda retirá-los”, conta ela. “Isso aqui virou um grande cemitério e precisamos viver aqui porque não temos mais dinheiro para pagar aluguel”.
Como ela, as cerca de mil famílias que já chegaram à cidade antiga vivem sem água ou energia elétrica. O governo tenta limpar as ruas e instalar a iluminação pública, mas o trabalho é lento.
As estimativas mais otimistas são de que entre 9 mil e 11 mil civis morreram na campanha para expulsar o Estado Islâmico de Mossul. As mais pessimistas, falam em mais de 20 mil.
Apesar da brutalidade do Estado Islâmico, pouca gente na cidade antiga de Mossul tem dúvidas de quem foram os maiores responsáveis pelas mortes por aqui. “O Daesh [como o Estado Islâmico também é chamado] matou muita gente, principalmente antes da guerra. Assassinaram a sangue frio qualquer um de quem desconfiassem. Mas aqui, na guerra, fomos mortos pelo ar, pelos americanos e pelo exército”, conta Mohamed Mohamed, um jovem de 22 anos.
Mohamed ainda não voltou a viver na cidade antiga, mas, com o irmão mais velho, reabriu o pequeno negócio que tinham em Mossul.
Seu pequeno restaurante ficava a poucos passos da entrada da mesquita de Al Noori, a mais importante de Mossul e aquela em que o líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi declarou o nascimento do califado. Hoje ele vende chá e sanduíches para os curiosos que vem ver o que sobrou da mesquita.
“Foram anos duros e no final, nos atacaram como se fôssemos eles. A vida é injusta”, diz. Diante de nós, um braço pode ser visto entre as lajes de uma casa que desabou após um ataque aéreo.
Ninguém sabe se o membro, já quase mumificado, é de um civil ou de um combatente do Estado Islâmico.