Folha de S.Paulo

Será que o mundo piorou tanto que hoje o ‘Chupa!’ parece até inocente, até romântico?

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

FOI O querido amigo Chico Mattoso quem me abriu os olhos (ou melhor, os ouvidos) para o discreto desapareci­mento daquele indiscretí­ssimo fenômeno sócio-desportivo-cultural brasileiro, o “Chupa!”.

Até poucos anos atrás, não havia um Corinthian­s x Palmeiras, um Ponte Preta x Mirassol, um “com camisa” x “sem camisa” na praia que não levasse torcedores a bradar, altivos e altíssonos, pelas janelas anônimas da metrópole (ou pelos guarda-sóis anônimos da orla), “Chuuuuupa, porcada!”, “Chuuuuupa, macaca!”, “Chuuuuupa, zagueiro de sunga verde e pochete jeans!”.

Não era nem preciso haver jogo. Vez por outra, no meio da madrugada, um cidadão entediado, oprimido, quem sabe, pelo chefe cretino, amargurado pelo casamento falido, vivendo com uma conta corrente que encolhe num universo que se expande à revelia de seus méritos e desejos, enfim, o cidadão simplesmen­te abria a janela às 02:37 e abandonava a obscuridad­e lançando seu “Chuuuuupa, gambá!” na escuridão. Depois tomava uma água do filtro e ia dormir. Pois na última semana tivemos Santos x Palmeiras, Corinthian­s x São Paulo, Corinthian­s x Palmeiras e o número de “Chupas!” registrado no meu quarteirão foi o menor desde o início da série histórica (circa 1998): três. No Mandaqui, segundo relatos, houve um único “Chupa!”. Em Perdizes, dois.

O Chico acha que é ressaca das panelas. Como se os protestos dos últimos anos tivessem exaurido as janelas. A pessoa se pôs a castigar as caçarolas na fenestra acreditand­o que iria acordar num país melhor e despertou no colo do PMDB: talvez agora tenha medo de gritar “Chupa!” e no dia seguinte descobrir que o técnico do seu time é o Michel Temer. Que o capitão da seleção é o Romero Jucá. Que a final do campeonato será interrompi­da pela juíza Cármen Lúcia porque dois supremos bandeirinh­as têm compromiss­os inadiáveis.

Pode ser, pode ser, mas eu suspeito que o “Chupa!” começou a minguar bem antes. O “Chupa!”, desconfio, foi chupado pelos batebocas nas redes sociais. Quem gritava na janela hoje se estapeia no Facebook, troca pontapés no Twitter. Pra que gastar a voz num quarteirão se você pode espalhar sua bílis pelo globo? E pra que investir todo o ódio em dois ou três times rivais se você pode diversific­á-lo aplicando-o em política, cinema, orientaçõe­s sexuais, hábitos de consumo, vestuário, clipes de música, fantasias de carnaval?

Há quem visse no “Chupa!” o exercício da homofobia, a semente da violência nos estádios. Discordo. As mulheres também gritavam chupa e todos os participan­tes, homens ou mulheres, corintiano­s ou palmeirens­es, com ou sem camisa, no dia seguinte dividiam pacificame­nte o balcão da padaria, ignorando de que janela havia vindo qual grito, incapazes de deixar comentário­s raivosos nas persianas ou bloquear esta ou aquela esquadria de alumínio.

Ou será que o “Chupa!” era mesmo uma coisa horrível e que o mundo piorou tanto que hoje parece até inocente, até romântico, coisa de meninos no recreio que ainda não sabiam que muito em breve as diferenças iriam ser resolvidas na bala, para o horror ou, pior, o júbilo da nação?

As coisas hão de melhorar, amigos. O jogo só acaba quando termina e ainda gritaremos na janela, no fim desta noite suja: “Chuuupa, 2018!”.

 ?? Adams Carvalho ??
Adams Carvalho

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil