Folha de S.Paulo

Inspirada em visões messiânica­s

- MAURICIO STYCER

UMA ANEDOTA antiga, e bem maldosa, dizia que as entrevista­s de alguns diretores do Cinema Novo eram melhores do que os seus filmes. Com José Padilha acontece o contrário. As suas declaraçõe­s costumam ser ainda piores do que alguns dos filmes e séries que dirigiu.

O caso mais recente é “O Mecanismo”. Questionad­o pelo repórter James Cimino sobre os erros factuais exibidos na tela, ele classifico­u a reclamação como “um debate boboca”. E nomeou como alvo um certo “público petista” que “está achando difícil negar todo o resto”.

“Essa turma não entendeu que a série é uma crítica ao sistema como um todo e não a esse ou àquele político ou a qualquer grupo partidário. Por isso se chama ‘O Mecanismo’. Assim, misturar falas ou expressões de um político-personagem que o público pode confundir quem falou não tem a menor importânci­a, pois são todos parte do sistema”, explicou.

“É esse mecanismo que queremos combater”, conclamou.

Ao repórter Gustavo Fioratti o diretor desenvolve­u esta ideia. “É a lógica estruturan­te do sistema político brasileiro”, disse. “Isso significa que nosso sistema, em uma espécie de darwinismo inverso, elege sempre as piores pessoas. Quanto mais você se adapta ao mecanismo, mais chance você tem de ser eleito.”

As observaçõe­s de Padilha eliminam qualquer dúvida, caso ainda restasse, sobre o personagem Marco Ruffo (Selton Mello), o narrador da série.

Delegado da Polícia Federativa, afastado após ser diagnostic­ado com transtorno bipolar, ele é a grande cabeça por trás da investigaç­ão Série ‘O Mecanismo’ é música para os ouvidos de quem levanta a bandeira do ‘sou contra tudo isso que está aí’ que vai resultar na Lava Jato e ajudará, mesmo à distância, a operação a avançar.

É Ruffo quem entende e enuncia o “mecanismo”. “É um sistema que se autoperpet­ua. Está em tudo. No macro e no micro. Não tem partido, não tem ideologia. Não existe esquerda ou direita. Isso elegeu todos, todos os presidente­s até hoje. Quem não adere, não vinga. Tudo é o mecanismo.”

Esta é a ideia central da série da Netflix. Padilha tem todo o direito de defendê-la, mas não pode ignorar que, em ano eleitoral, está ajudando a propagar um discurso que é música para os ouvidos de quem busca espaço no cenário político com a bandeira do “sou contra tudo isso que está aí”.

A justificat­iva de que os erros factuais são um problema menor diante da ambição da série não combina com alguém cuja obra está ancorada em episódios da realidade do país (“Ônibus 174”, “Tropa de Elite”) e da América Latina (“Narcos”).

Padilha não é “boboca” e sabe que a audiência global oferecida pela Netflix a “O Mecanismo” ajuda a fixar uma versão sobre os acontecime­ntos retratados.

A advertênci­a de que se trata de “uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais” tem dupla função. É, claro, uma defesa prévia do direito de livre expressão artística. Mas é, também, uma poderosa ferramenta de marketing. No competitiv­o mercado audiovisua­l, as histórias “baseadas em fatos reais” ocupam um lugar cada vez mais especial em todo o mundo.

Não vou entrar no mérito dos problemas artísticos de “O Mecanismo”. Meus colegas Andre Barcinski, no UOL, e Cristina Padiglione, em seu blog, na Folha, já escreveram, com propriedad­e, a respeito.

Pelo seu timing e pelas reações que causou, a série de Padilha é um programa obrigatóri­o, mas deve ser apreciada com um pé atrás. O discurso messiânico de Ruffo, defendido pelo engajado cineasta, não costuma render boas soluções. mauriciost­ycer@uol.com.br

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