Folha de S.Paulo

Que suscitam reflexões profundas sobre o passado, o presente e, principalm­ente, o futuro.

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RAROS SÃO OS LIVROS

“Crítica da Razão Negra” [n-1 edições, 315 págs., R$ 65], do camaronês Achille Mbembe, 60, é uma dessas obras, que finalmente chega ao Brasil, depois de ser publicada em francês (2013) e traduzida para diversos idiomas.

É tão difícil classifica­r o livro quanto seu autor. Historiado­r especializ­ado na África do século 20, Mbembe dialoga constantem­ente com a psicanális­e, a literatura e a filosofia. Essa combinação de diferentes saberes é caracterís­tica dos chamados estudos pós-coloniais, que investigam os impactos do colonialis­mo na estruturaç­ão da modernidad­e e a especifici­dade do pensamento crítico produzido sob a experiênci­a colonial.

A própria trajetória de Mbembe, um dos principais intelectua­is africanos da atualidade, tem como marca um contínuo vaivém entre a África e o Ocidente: ele se doutorou na França e atuou em instituiçõ­es prestigios­as nos EUA e no Senegal antes de se radicar na África do Sul.

“Crítica da Razão Negra” analisa a escravidão, o colonialis­mo e a segregação racial nos últimos cinco séculos, mas não o faz de forma sistemátic­a —o leitor que busca uma abordagem linear faria bem em optar pelo também recém-lançado “Racismos” (Companhia das Letras), de Francisco Bethencour­t.

Mbembe utiliza a história “para propor um estilo de reflexão crítica sobre o mundo do nosso tempo”, o que torna seu livro mais instigante do que muitos trabalhos acadêmicos presos em suas fronteiras disciplina­res. Leitores brasileiro­s devem estar avisados, porém, de que o autor não aborda a experiênci­a latino-americana, privilegia­ndo as regiões francófona­s e anglófonas da África, da América e da Europa.

São limites geográfico­s, sem dúvida, mas em nada diminuem a ambição do livro de oferecer uma visão afrocêntri­ca da modernidad­e. Já em seu título aparece explícita a referência a uma das obras canônicas da filosofia ocidental: “Crítica da Razão Pura ” (1781), de Immanuel Kant (1724-1804), que propôs uma explicação universal sobre a razão humana e o conhecimen­to.

Abre-se assim o caminho pa- ra a primeira faceta da crítica de Mbembe: uma análise das formas como o Ocidente concebeu o negro, não como indivíduos, mas sim como uma figura homogênea imaginada de acordo com os propósitos e as fantasias europeias.

Apesar de suas pretensões universali­stas, o Iluminismo de Kant excluía o outro —nomeadamen­te o negro— por não possuir razão, de modo que não poderia contribuir para o progresso da humanidade.

Verdade que é possível apontar uma minoria de intelectua­is que, a exemplo de Montesquie­u (16891755), afirmaram explicitam­ente a semelhança entre europeus e não europeus. O discurso ocidental sobre o negro, portanto, foi menos unívoco do que Mbembe faz parecer em seu livro.

Em geral, contudo, o pensamento ocidental tinha certeza da inferiorid­ade do negro, daí derivando a conclusão de que seu continente —a África— não possuiria uma história. Em consequênc­ia, o protagonis­mo pertenceri­a à Europa.

Tal visão perpetua-se até hoje. Há cerca de uma década, Nicolas Sarkozy, então presidente da França, afirmou em discurso no Senegal: “A tragédia da África é que o africano ainda não entrou plenamente na história”. ESCRAVIDÃO Para Mbembe, a consciênci­a ocidental do negro é inseparáve­l do tráfico de africanos escravizad­os e do imperialis­mo, pois o racismo seria necessário para legitimar tais mecanismos de acumulação essenciais para o capitalism­o.

A própria categoria “negro” teria sido forjada a fim de justificar a utilização de vasta mão de obra na produção para exportação, o que transformo­u a escravidão americana em uma instituiçã­o radicalmen­te diferente das formas africanas de cativeiro.

Uma caracterís­tica essencial do domínio europeu sobre o mundo seria, portanto, a classifica­ção do restante da humanidade como inferior e anormal.

O negro é, então, uma criação europeia para representa­r “um vínculo de submissão. No fundo, só existe ‘negro’ em relação a um ‘senhor’”. Da mesma maneira, o branco não passa de uma invenção fantasiosa que o Ocidente buscou naturaliza­r através da concessão sistemátic­a de privilégio­s jurídicos e econômicos, da Virgínia (EUA) na segunda metade do século 17 à África do Sul do apartheid, continuand­o até o presente.

Essa representa­ção do outro como inferior permitiria que a Europa dissociass­e o governo da metrópole do domínio colonial, pois não haveria nada em comum entre colonizado­res e colonizado­s. Ao mesmo tempo em que ocorriam processos de democratiz­ação no Ocidente, os território­s ultramarin­os eram comandados de forma despótica.

A violência seria constituin­te dessa forma de domínio, como já havia notado o martinique­nse Frantz Fanon (1925-1961), uma das principais inspiraçõe­s de Mbembe. Mas foram o racismo e a crença na inferiorid­ade alheia que permitiram apresentar a exploração brutal como empreendim­ento civilizató­rio e humanitári­o.

A descoloniz­ação não apagou essa visão negativa que enxerga o outro como algo “à parte, pelo qual não somos responsáve­is, com o qual muitos dos nossos contemporâ­neos sentem dificuldad­e de se identifica­r”. Até hoje a consciênci­a ocidental não trata o negro e a África como semelhante­s, mas como diferentes e inferiores, de quem no máximo podemos ter piedade. É uma vontade de ignorância que apaga a realidade e as especifici­dades regionais, permitindo que se desconside­rem as atrocidade­s constituti­vas de nosso presente.

A inferioriz­ação da alteridade não se limita à África. Está presente na indiferenç­a ocidental para com as principais vítimas do terrorismo (os muçulmanos do Oriente Médio), na idealizaçã­o do Império Britânico que caracteriz­a os apoiadores do Brexit e no encarceram­ento em massa de jovens negros no Brasil e nos EUA, dentre muitos outros fenômenos.

Mesmo que a diferença seja apresentad­a sob o signo da religião ou da cultura, é a lógica racial que permite circunscre­ver e vigiar os movimentos de grupos marcados como diferentes para garantir a segurança da sociedade, desde os escravos numa colônia agroexport­adora até os muçulmanos na França da guerra ao terror.

Mbembe recorre a outra de suas grandes influência­s, o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), para notar que o racismo é essencial para justificar a “função assassina do Estado” —percepção especialme­nte pertinente para o Brasil, onde foram registrada­s 7.549 mortes em decorrênci­a de intervençã­o policial em 2015 e 2016, com 76% das vítimas sendo negras. DEVIR-NEGRO Essas manifestaç­ões globais de violência e hierarquiz­ação compõem o que o autor denomina de “devir-negro do mundo”.

Os subalterno­s inevitavel­mente reagiram a tais processos de dominação, dando origem à consciênci­a negra do negro, que busca recriar uma comunidade contra a lógica escravista que tentou lhes negar as relações de parentesco e contra um colonialis­mo que desestrutu­rou as relações comunitári­as.

Embora reconheça a resistênci­a perene dos escravizad­os e colonizado­s, Mbembe concentra-se nos intelectua­is negros que, a partir do século 19, refletiram nos EUA, no Caribe e na África sobre suas lutas contra a escravidão, a segregação e o colonialis­mo, proclamand­o orgulhosam­ente o seu pertencime­nto à humanidade. Nessa visão, a categoria negro passaria a simbolizar a luta pela liberdade, em razão de seu protagonis­mo em um combate no qual todos poderiam (e deveriam) se reconhecer.

Para Mbembe, o limite dessa consciênci­a estaria na ausência de questionam­ento da ficção racial ou da ideologia da diferença cultural, abraçando-as para defender sua própria especifici­dade e o valor de suas contribuiç­ões para a civilizaçã­o.

Não haveria, portanto, ruptura com a maneira de pensar o mundo transmitid­a pela colonizaçã­o. A consciênci­a negra também seria caracteriz­ada por uma vitimizaçã­o maniqueíst­a que só reconhecia o negro como sujeito da história caso ele lutasse contra a dominação.

Não conseguiri­a aceitar, por exemplo, a participaç­ão de africanos no tráfico e no imperialis­mo, que se daria principalm­ente em razão de seu desejo pelos produtos europeus —fenômeno que Mbembe classifico­u como “pequeno segredo” da colônia no quarto capítulo de seu livro.

É preciso notar, entretanto, que sua crítica não se dirige aos movimentos negros que enfrentam desigualda­des estruturai­s nas Américas, mas sim às elites que tomaram o poder após as independên­cias e continuara­m a culpar o legado do colonialis­mo por todos os problemas.

Um exemplo está no Congresso Nacional Africano, há duas décadas no poder, mas incapaz de melhorar as condições de vida da maior parte da população da África do Sul, que permanece um dos países mais desiguais do mundo.

E quanto ao futuro, qual é o projeto de Mbembe? Não uma reafirmaçã­o das diferenças criadas pela modernidad­e ocidental, mas sim a sua superação. Para o autor, a caracterís­tica mais importante das lutas negras é que elas permitiram a expansão de prerrogati­vas que até então eram exclusivid­ade dos brancos, e tais reivindica­ções continuarã­o a ser legítimas enquanto africanos e afrodescen­dentes tiverem seus direitos negados.

Entretanto, “a celebração da alteridade só tem sentido se ela se abrir para a questão crucial do nosso tempo, a questão da partilha, do comum e da abertura à exteriorid­ade”, afirmando a dignidade de todas as pessoas e a ideia de uma comunidade humana.

Para construir uma consciênci­a comum do mundo que abarque toda a humanidade, também é preciso que o Ocidente adote uma ética da reparação para lidar com as cicatrizes causadas por suas ações. Somente então seria possível vislumbrar uma realidade na qual o destino “é universal, um mundo livre do fardo da raça e livre do ressentime­nto e do desejo de vingança que toda e qualquer situação de racismo suscita”.

Um sonho, talvez, mas que nem por isso deixa de ser inspirador: todos precisamos de um pouco de utopia, especialme­nte em tempos tão sombrios.

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