Folha de S.Paulo

Religião, ficção ou realidade?

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SÃO PAULO - O papa disse que o inferno não existe.

Há duas formas de tratar a religião. Podemos vê-la como um discurso puramente alegórico —isto é, sem maiores preocupaçõ­es em retratar o mundo real (como a série “O Mecanismo”). Nesse plano, abrir o mar Vermelho (Êx. 14:21-28), parar o movimento do Sol (Josué 10:12-14) e falar em concepção imaculada, ressurreiç­ões e alma não representa­m um desafio cognitivo.

Eu diria até que essa religiosid­ade pode ser saudável. Aquilo que se assume desde sempre como ficção raramente dá margem a fundamenta­lismos e à violência a eles associada. No mais, frequentar igrejas oferece ao fiel a possibilid­ade de inventar propósitos para a sua vida, além de oportunida­des de interação social, o que é bom para a saúde.

O outro modo de encarar a religião é dar crédito às afirmações dos textos sagrados e de sacerdotes e tratálas como hipóteses testáveis sobre o mundo. Aí, pouco do que dizem para em pé. Afinal, não dá para suspender a rotação da Terra sem arrasar o planeta; seres humanos não se reproduzem por partenogên­ese; e inexiste modelo físico pelo qual uma alma imaterial possa interagir com um corpo feito de matéria bariônica.

O fiel pode, é claro, escolher ficar com a religião mesmo que ela vá contra a física, a química, a biologia, a estatístic­a. Um número não desprezíve­l de pessoas acredita na infalibili­dade do papa e na inerrância das Escrituras. Mas deve ser cognitivam­ente frustrante viver num mundo em que a ciência entrega seus produtos (antibiótic­os, fornos de micro-ondas etc.) e a religião se esconde confortave­lmente atrás de uma mercadoria que só pode ser despachada quando o comprador já não estiver aqui para assinar o recibo.

Espero que o Vaticano não precise de mais 2.000 anos para concluir que o paraíso e todo aquele papo de salvação eterna são tão simbólicos quanto o inferno, que não existe. helio@uol.com.br

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