Folha de S.Paulo

Lugar de escuta, lugar de fala

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

UM PACIENTE quer saber, como condição para começar sua análise, três coisas: se acredito em Deus, se já tive depressão e se tenho filhos. Gênero e idade ele pôde deduzir sozinho. Outro me pergunta se já fui abandonada, fiz aborto ou sou lésbica.

O que essas pessoas podem estar buscando quando fazem tais perguntas? Entre outras questões, a garantia de que serão entendidas. De que poderei de fato compreende­r suas motivações e sofrimento. A lógica é de que se você viveu algo que eu vivi (divórcio, migração, doença degenerati­va...), deve ter experiment­ado a mesma coisa que eu e, portanto, me compreende­rá.

Quantas vidas um analista teria que ter vivido para poder escutar aquele que chega a seu consultóri­o? Como em “Orlando” de Virginia Wolf, teria que nascer homem e depois tornar-se mulher? Teria que ser judia, alcoólatra, estar na menopausa? Talvez tivesse que fazer um cartão que pacientes do sexo feminino, mulheres, heterossex­uais... o escolhesse­m?

Acontecime­ntos e experiênci­as supostamen­te comuns incidem sobre sujeitos únicos. Dez mulheres que foram atacadas sexualment­e terão dez experiênci­as distintas: tornar-se frígida, elaborar o trauma, psicotizar e criar uma ONG em defesa das mulheres são saídas possíveis entre inúmeras outras. Se o analista tiver sofrido ele mesmo de escutar seu paciente.

Só o sujeito saberá pelo que passou e só uma escuta isenta pode ajudá-lo a nomear sua experiênci­a única. E haja análise do analista para separar suas histórias das dos seus pacientes, guardando para si seus próprios julgamento­s e opiniões. Exercício perene, que faz da formação de um analista um campo de contínua reflexão e crítica, em sua análise, com supervisão, e com a teoria. sujeito. “Lugar de fala” é um conceito que trata de visibiliza­r a experiênci­a pessoal de sujeitos tolhidos em seu direito de expressão por questões de raça, classe e gênero. Baseia-se em privilegia­r a voz do sujeito que vive a dura realidade de ser mulher, transexual, negro ou pobre, entre outros, e é direção política incontorná­vel de quem se atreve a lutar pela democracia hoje —Marielle sempre.

Mas supor que o analista deva ser negro para atender negros ou ser lésbica para atender lésbicas é apostar na experiênci­a pessoal do analista e confundir lugar de escuta com lugar de fala. Se existem analista. Além da gratidão que lhe tenho pela competênci­a com que conduziu minha análise, tive com ele a oportunida­de de testemunha­r a ética na qual se sustenta o lugar do analista. Ética que lhe permitiu, mesmo sendo homem, ser capaz de escutar minhas angústias ligadas à maternidad­e.

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