Lugar de escuta, lugar de fala
UM PACIENTE quer saber, como condição para começar sua análise, três coisas: se acredito em Deus, se já tive depressão e se tenho filhos. Gênero e idade ele pôde deduzir sozinho. Outro me pergunta se já fui abandonada, fiz aborto ou sou lésbica.
O que essas pessoas podem estar buscando quando fazem tais perguntas? Entre outras questões, a garantia de que serão entendidas. De que poderei de fato compreender suas motivações e sofrimento. A lógica é de que se você viveu algo que eu vivi (divórcio, migração, doença degenerativa...), deve ter experimentado a mesma coisa que eu e, portanto, me compreenderá.
Quantas vidas um analista teria que ter vivido para poder escutar aquele que chega a seu consultório? Como em “Orlando” de Virginia Wolf, teria que nascer homem e depois tornar-se mulher? Teria que ser judia, alcoólatra, estar na menopausa? Talvez tivesse que fazer um cartão que pacientes do sexo feminino, mulheres, heterossexuais... o escolhessem?
Acontecimentos e experiências supostamente comuns incidem sobre sujeitos únicos. Dez mulheres que foram atacadas sexualmente terão dez experiências distintas: tornar-se frígida, elaborar o trauma, psicotizar e criar uma ONG em defesa das mulheres são saídas possíveis entre inúmeras outras. Se o analista tiver sofrido ele mesmo de escutar seu paciente.
Só o sujeito saberá pelo que passou e só uma escuta isenta pode ajudá-lo a nomear sua experiência única. E haja análise do analista para separar suas histórias das dos seus pacientes, guardando para si seus próprios julgamentos e opiniões. Exercício perene, que faz da formação de um analista um campo de contínua reflexão e crítica, em sua análise, com supervisão, e com a teoria. sujeito. “Lugar de fala” é um conceito que trata de visibilizar a experiência pessoal de sujeitos tolhidos em seu direito de expressão por questões de raça, classe e gênero. Baseia-se em privilegiar a voz do sujeito que vive a dura realidade de ser mulher, transexual, negro ou pobre, entre outros, e é direção política incontornável de quem se atreve a lutar pela democracia hoje —Marielle sempre.
Mas supor que o analista deva ser negro para atender negros ou ser lésbica para atender lésbicas é apostar na experiência pessoal do analista e confundir lugar de escuta com lugar de fala. Se existem analista. Além da gratidão que lhe tenho pela competência com que conduziu minha análise, tive com ele a oportunidade de testemunhar a ética na qual se sustenta o lugar do analista. Ética que lhe permitiu, mesmo sendo homem, ser capaz de escutar minhas angústias ligadas à maternidade.