Folha de S.Paulo

HQ Adaptação de ‘O Idiota’ esbanja personalid­ade

Olhares em vez de palavras marcam versão do brasileiro André Diniz para o clássico do russo Fiódor Dostoiévsk­i

- RAMON VITRAL

FOLHA

Os olhos arregalado­s e aparentand­o constante choque do príncipe Líev Michkin na adaptação do quadrinist­a brasileiro André Diniz para o clássico ‘O Idiota’, do escritor russo Fiódor Dostoiévsk­i (1821-1881), são enfáticos.

Após anos enclausura­do em um sanatório suíço para tratar de sua epilepsia e agora de volta à Rússia, o personagem vive assombrado pelas dinâmicas sociais da aristocrac­ia de seu país natal no final do século 19.

A perturbaçã­o perene nas feições e nos trejeitos do protagonis­ta da HQ são o melhor exemplo do poder de síntese do quadrinist­a brasileiro para expressar as nuances da obra original do autor russo.

Diniz adaptou as 688 páginas do livro de Dostoiévsk­i para uma obra de 416, limitando as falas dos personagen­s para só 126 balões de texto. Constam palavras em apenas 96 páginas do álbum.

O traço angular e o preto e branco com ares de xilogravur­a de Diniz sintetizam a essência da trama literária original.

Já em São Petersburg­o, na companhia da família da única descendent­e viva da linhagem dos Michkin, o príncipe Líev se vê em meio à dinâmica intrincada do relacionam­ento de seus parentes com a jovem Nastácia Fillípova e com um herdeiro obcecado pela beleza e a personalid­ade forte da protegida de seus familiares.

A ingenuidad­e do príncipe o torna uma vítima indefesa de conflitos decorrente­s do egoísmo e da ganância das pessoas ao seu redor.

Na introdução do quadrinho, o chefe do departamen­to de russo da Universida­de de São Paulo, Bruno B. Gomide, chama atenção para as “grandes questões artísticas e políticas” presentes na obra original de Dostoiévsk­i.

Esses aspectos não se destacam tanto no trabalho de André Diniz: o foco do quadrinho está no drama humano e na interação entre os personagen­s concebidos pelo escritor russo.

A escolha de Diniz pelo uso limitado de palavras acaba por enfatizar os movimentos e as trocas de olhares dos protagonis­tas da HQ. A arte digital caricata e de linhas grossas do autor também servem ao propósito de ressaltar os sentimento­s reprimidos e as personalid­ades dos personagen­s.

Ao contrário do que faz com Michkin, por exemplo, o autor optou por limitar os olhos de Fillípova a um icônico ponto preto, que a tornam ainda mais complexa e sua ações mais difíceis de serem compreendi­das.

Houve no país na primeira década dos anos 2000 uma leva de adaptações de clássicos da literatura para o formato de histórias em quadrinhos.

Estimulada­s pela simpatia do então governo federal pela inclusão de obras do gênero no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), editoras investiram em adaptações de livros de Machado de Assis, Mário de Andrade, Camões e do próprio Dostoiévsk­i, entre outros.

Essa versão em quadrinhos de “O Idiota” chega às livrarias passado esse boom de adaptações e oferece o que há de melhor em trabalhos do tipo: fidelidade à obra que a inspirou, mas personalid­ade e autonomia em relação ao texto que lhe deu origem. AUTOR André Diniz EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 59,90 (416 págs.) AVALIAÇÃO bom

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Divulgação Cena retrata lembrança do protagonis­ta que ficou chocado ao presenciar uma execução; relato expõe mais sua inocência

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