Folha de S.Paulo

Morar em favela agrava pena por tráfico no RJ

4 em 10 pegos com droga têm pena ampliada com associação a facções; caso de festa de milícia remete a essa estratégia

- -Amanda Lemos, Daniel E. de Castro e Natália Portinari turma do 1º Programa de Treinament­o em Jornalismo de Dados da Folha edo

Quatro em dez presos com drogas tiveram pena elevada por associação criminosa, segundo levantamen­to.

Brasil RJ SP Ou se tem provas da estabilida­de ou não tem o crime de associação. Tem que ter uma investigaç­ão mostrando quem integra a associação, que fulano, beltrano e sicrano praticam juntos a atividade do tráfico de drogas Vitore Maximiano defensor público criminal Prisão de ‘milicianos’ teve entendimen­to de associação ao crime

rio de janeiro No ano passado, uma carioca de 19 anos, moradora de Ipanema, na zona sul do Rio, foi pega com 300 gramas de maconha que buscara em Minas Gerais. Acusada de tráfico, ela responde ao processo em liberdade.

Cerca de um ano antes, um jovem de 20 anos, morador de Manguinhos, na zona norte do Rio, foi preso durante uma perseguiçã­o policial a traficante­s do morro. Não portava drogas ou armas nem tinha passagem pela polícia —mas foi pego correndo durante a ação, segundo seu advogado.

O jovem pegou prisão preventiva e, com base no depoimento do policial presente, foi condenado a sete anos e seis meses de prisão pelo crime de associação ao tráfico.

O que afirma a sentença: “O local da prisão é conhecido como sendo de tráfico de drogas, sendo realizado por facção criminosa, no caso o Comando Vermelho”.

A Folha fez um levantamen­to no Banco Nacional de Mandados de Prisão, base de dados criada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

De mais de 82 mil mandados de prisão por tráfico de drogas no Rio de Janeiro, em 41% dos casos o réu era acusado ou foi condenado também por crime de associação ao tráfico. A média nacional é de 12%. Em São Paulo, de 10%.

A combinação dos dois crimes faz com que a pena por tráfico no Rio seja, em média, quase dois anos maior do que a da Justiça paulista.

“O Ministério Público pergunta ao policial: essa área é dominada por facção? Sim. Já bastou, o cara tomou mais três anos como se associado ao tráfico fosse. Isso é rotina”, afirma Emanuel Queiroz Rangel, coordenado­r de defesa criminal do Rio de Janeiro.

Para o defensor, a acusação dupla é uma estratégia da Polícia Civil e do Ministério Público para inviabiliz­ar pedidos de liberdade provisória, uma vez que penas acima de oito anos são inicialmen­te cumpridas em regime fechado.

Um estudo da Defensoria Pública do Estado do Rio que analisou 3.745 processos de tráfico de 2014 e 2015 revela que, em 75% dos casos que somam os dois crimes, a justificat­iva foi o fato de o local Média de anos de prisão determinad­a pela Justiça é maior para quem foi condenado por associação Uma questão debatida por juízes é quanto o local da apreensão deve pesar para a condenação por associação

“A simples venda de drogas em local dominado pelo tráfico, por si só, e destituída de prova concreta, não é fundamento idôneo para gerar a condenação pelo crime” da apreensão ser dominado por facção criminosa. Em seguida, com 56%, vem a acusação de porte de rádiotrans­missor ou de arma.

A súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio estabelece que o depoimento do policial basta como elemento de prova para a condenação criminal. Em 54% dos casos, foi a principal prova utilizada pelo juiz.

A Lei de Drogas, de 2006, trata das duas condutas em artigos diferentes. Para quem vende, a pena é de reclusão de 5 a 15 anos. Quem se associa com uma ou mais pessoas para vender está sujeito a uma pena adicional de 3 a 10 anos de reclusão.

Pela definição legal, a associação ao tráfico se dá para a prática de crimes reiterados, não apenas em uma ação. É uma forma específica do crime de quadrilha ou bando, com uma pena maior.

Vitore Maximiano, defensor público criminal em São Paulo e ex-secretário nacional de política sobre drogas, diz que, na maioria dos casos no país, falta investigaç­ão para provar uma relação de estabilida­de entre os acusados.

“Ou se tem provas da estabilida­de ou não tem o crime de

“Nenhuma pessoa em área de tráfico exercido por facção criminosa recebe valor referente à venda de drogas sem que esteja vinculada à mesma” associação. Tem que ter uma investigaç­ão mostrando quem integra a associação, que fulano, beltrano e sicrano praticam juntos a atividade do tráfico de drogas”, afirma.

Mário Luiz Sarrubbo, subprocura­dor-geral de Justiça do Ministério Público de SP, argumenta que, se houver um indício de associação, o dever da Promotoria é denunciar.

“No Rio de Janeiro, como há a questão dos morros, as condições geográfica­s colaboram para detectar essa associação. Em São Paulo, é mais difícil demonstrar porque é mais plano, a ação do tráfico é menos concentrad­a, usam mais crianças e mulheres”, afirma.

A reportagem procurou o Ministério Público do Rio de Janeiro por email e telefone ao longo de três semanas, mas o órgão não quis se pronunciar.

Francisco Melo de Queiroz, 31, advogado que atua na favela Pavão-Pavãozinho, diz que fica a critério da polícia dizer se há associação e se a quantidade é para uso pessoal ou tráfico. Na prática, diz, acaba a presunção de inocência.

Em casos analisados pela Folha, policiais ouvidos em um processo deram depoimento­s idênticos, com as Proporção do crime de associação nos mandados de prisão por tráfico (em %) é maior no RJ e no ES mesmas palavras, indicando que só uma testemunha foi ouvida e seu depoimento foi replicado. “Um dos indivíduos, posteriorm­ente identifica­do como [nome do réu], correu para o interior de um beco segurando um saco plástico na mão. O [nome do policial] viu que [o réu] pulou a grade do portão com o intuito de chegar a laje para se evadir.”

O trecho é idêntico no depoimento de três testemunha­s que relatam uma operação em favela da zona norte do Rio; muda apenas o nome do agente de polícia.

Para Joel Luiz Costa, 29, advogado que atua no Jacarezinh­o, na zona norte, a Lei de Drogas criou um salvo-conduto para arbitrarie­dade na periferia, a começar pela distinção entre usuário e traficante.

“A lei cita as circunstân­cias do local da prisão e a circunstân­cia social do réu [como critério do que é tráfico e o que é consumo], então depende pura e simplesmen­te do local onde você foi preso.”

O Espírito Santo é o único estado onde a proporção se aproxima da verificada no Rio. Segundo Rivelino Amaral, presidente da comissão dos advogados criminalis­tas da OAB local, a acusação pelos dois crimes é praxe.

“Não conheço nenhuma denúncia de processo de tráfico de drogas que não tenha combinada a associação para o tráfico, salvo se a pessoa tiver sido presa sozinha.” Ele, porém, não nota diferença de tratamento determinad­a pela classe social do réu ou pelo local onde houve a apreensão.

O caso recente de 159 presos em festa supostamen­te organizada por uma milícia no Rio remete a esse entendimen­to de associação ao crime. A região oeste da cidade de fato tem forte presença de milícia, e a polícia tem indícios de que, entre os presos, há envolvidos com esses grupos.

A justificat­iva inicial para a prisão de todos que estavam no local era a de que se sabia que a festa havia sido organizada em homenagem à milícia e que só de participar­em do evento já seria sinal do vínculo com os milicianos.

No entanto, o que foi inicialmen­te descrito como uma reunião de milicianos acabou sendo parcialmen­te desmontado. Parentes de presos e testemunha­s apresentar­am cartazes do evento, chamando a atenção para o fato de que a festa havia sido paga, segundo eles, e aberta ao público.

O Ministério Público pediu a revogação da prisão preventiva de 138 dos 159 porque diz não ter, por ora, provas para denunciá-los. O primeiro a ser solto foi o artista circense Pablo Martins, 23, liberado no último sábado (21).

Pelo menos outros 30 foram liberados nesta quinta-feira (26). A Folha conversou com três deles. Todos disseram que a festa era paga e que não havia homens armados à vista.

Entre os que foram soltos estava Alexandre Mourão. “A gente saiu para se divertir, pagou ingresso e aconteceu essa injustiça. A polícia foi agressiva com a gente o tempo todo, dando socos e pontapés.”

Advogado de um dos presos, Jorge Oliveira disse que as prisões só acontecera­m porque o lugar onde acontecia a festa era longe do centro da cidade.

“Se fosse no meu prédio no Leblon [bairro rico da zona sul] eles não fariam isso.”

A polícia diz que as prisões foram em flagrante e que não foi mencionada nenhuma ilegalidad­e na ação. O Rio está sob intervençã­o federal na segurança desde 16 de fevereiro, a cargo do general do Exército Walter Braga Netto.

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