Folha de S.Paulo

Por que (ainda) devemos acreditar no compliance

- Décio Franco David e Tracy Reinaldet Décio Franco David é advogado e mestre em direito penal pela USP; Tracy Reinaldet, criminalis­ta e doutor em direito penal, é um dos defensores do ex-ministro Antonio Palocci na Operação Lava Jato

O modismo é algo que também atinge o direito penal. Em determinad­as épocas, alguns assuntos dessa disciplina ficam em voga, e grande parte da doutrina passa a consagrar seus estudos a tais temas.

Atualmente, o compliance (conformida­de com as normas) é a nova tendência que se apresenta na passarela do direito penal.

Muito se fala dele: uma nova forma de estruturar a atividade empresaria­l e, assim, adequá-la ao cumpriment­o das leis; o principal instrument­o para preservar a reputação de uma empresa; um programa que impede que os dirigentes e funcionári­os da pessoa jurídica pratiquem crimes. Mas será que isso é mesmo verdade? Afinal, o que podemos esperar de um programa de conformida­de?

Para inflar esse ceticismo face à crença no compliance, basta constatar que algumas das empresas que tiveram envolvimen­to na Lava Jato já possuíam, antes mesmo da operação, programas de conformida­de. No entanto, tais programas não foram capazes de impedir a prática de crimes, como os de geração de caixa dois, corrupção ou lavagem de dinheiro nessas empresas.

Efetivamen­te, o compliance era muitas vezes desrespeit­ado pelos dirigentes e funcionári­os dessas corporaçõe­s. Canais de denúncia não funcionava­m, e o departamen­to responsáve­l por essa área era “para inglês ver”, subordinad­o aos demais departamen­tos da empresa e sem nenhum poder de fiscalizaç­ão e de disciplina.

Entretanto nem tudo está perdido. Apesar das duras críticas que podemos fazer à real efetividad­e de um programa de conformida­de, a Lava Jato também nos ensinou que um programa sério de compliance pode, sim, evitar práticas delitivas. Contudo, a sua simples existência dentro da pessoa jurídica não é o suficiente para tanto.

De fato, para que o programa de conformida­de consiga realmente manter a empresa nos trilhos da legalidade, é necessário muito mais. Em primeiro lugar, o “compliance office” deve ter autonomia, funcionand­o como uma espécie de “corregedor­ia” dentro da pessoa jurídica. Em segundo lugar, o programa deve possuir um poder de disciplina dentro da empresa, ou seja, ele deve se impor sobre todos os dirigentes e funcionári­os da pessoa jurídica, pouco importando a posição hierárquic­a destes.

Em terceiro lugar, ele deve organizar a estrutura funcional da empresa, evitando que defeitos organizaci­onais possam facilitar ou fomentar a perpetraçã­o de atos ilícitos. Em quarto lugar, o compliance precisa criar dentro da pessoa jurídica uma cultura corporativ­a contrária à ilegalidad­e, para que todos os dirigentes e funcionári­os percebam que, por mais lucrativo que um crime possa parecer, jamais compensa.

É somente dessa forma que teremos um efetivo programa de compliance, o qual será realmente capaz de evitar práticas delitivas no seio da pessoa jurídica, conferindo a ela um “selo de integridad­e”.

E foi por ainda acreditar na existência de programas sérios de compliance que alguns acordos de colaboraçã­o premiada e de leniência, celebrados na operação Lava Jato, impuseram aos seus signatário­s a obrigação de adotar um programa de conformida­de no âmbito de suas atividades empresaria­is.

Esse dado é simbólico e demonstra que o Poder Judiciário ainda confia no compliance e o vê como um importante instrument­o de combate à corrupção. No entanto, para que esse instrument­o realmente funcione, o programa de conformida­de não pode existir apenas em aparência, mas deve ser aplicado e respeitado dentro da empresa, pois somente o compliance efetivo jamais sairá da moda —nem na doutrina, nem na prática corporativ­a.

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