Folha de S.Paulo

A minha democracia e a deles

Não resisti à teoria do demiurgo do macacão para me render à do demiurgo de toga

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas” I e II

Lula, um corintiano, foi condenado sem provas na primeira instância, submetido a processo de exceção no TRF-4, e Cármen Lúcia manipula a pauta do STF com receio de que o cumpriment­o das regras, não a exceção, o beneficie. A Segunda Turma do STF cumpre o princípio constituci­onal do juiz natural e os artigos 54 a 58 do Código de Processo Civil, de que o topete de Luiz Fux se orgulha, quando tira de Sergio Moro o que não diz respeito à Petrobras. É a síntese dos desmandos em curso contra os guelfos. Também os há contra gibelinos, palmeirens­es, carnívoros, veganos... O salvacioni­smo fascistoid­e é onívoro.

Não resisti à teoria do demiurgo do macacão para me render à do demiurgo de toga. Meu papo é a democracia liberal. Constituiç­ão boa nasce morta e não é assaltada por justiceiro­s e heróis da própria covardia. “Um juiz que manda alguém para a prisão em razão de uma interpreta­ção que ele nem acredita ser melhor, mas apenas diferente, de interpreta­ções rivais deveria ir ele próprio para a cadeia”. É Ronald Dworkin em “Justice for Hedgehogs” ( Justiça para Ouriços). O autor foi muito citado por Rosa Weber no voto em que ela admitia que a prisão de Lula feria a Constituiç­ão, mas, disse, em nome da colegialid­ade, recusava o habeas corpus, que é o instrument­o que se usa quando, em desacordo com a tal Constituiç­ão, a liberdade de alguém está ameaçada... Esqueceram de fazer essa colinha para a intrépida.

Escrevi o primeiro texto neste espaço no dia 25 de outubro de 2013. Chamava-se “Os 178 beagles”. Referia-me aos idiotas que invadiram um laboratóri­o porque estavam com pena dos cachorrinh­os. Lá se lê: “A fúria justiceira dos bons pode ser tão desastrosa como a justiça seletiva dos maus”. O tema eram os protestos de junho daquele ano, que instalaram um “malaise” na relação dos brasileiro­s com a vida pública que, antevi, seria de longa duração.

Mais um pouco daquela coluna: “Em política, quando os fins justificam os meios, o que se tem é a brutalidad­e dos meios com um fim sempre desastroso. A opção moralmente aceitável é outra: os meios qualificam o fim. Querem igualdade e mais justiça? É um bom horizonte. Mas será o terror um instrument­o aceitável, ainda que fosse eficaz?”

Nestes cinco anos, assistimos à derrocada do PT, ao impeachmen­t, que seguiu as regras do jogo, e à ascensão da Lava Jato. Saudei em toda parte o combate à corrupção, mas chamei a atenção, desde o primeiro momento, para o espírito jacobinist­a dos procurador­es e do juiz Sergio Moro, que se multiplico­u em versões mais bregas e com ternos e concepções de direito ainda mais mal cortados.

Nos 12 anos de blog, nos cinco de coluna e nos 31 de jornalismo, meus valores seguem os mesmos, ainda que possa ter mudado aqui e ali. Votei no presidenci­alismo. Errei! Passei a gostar de coentro e a detestar o frio. Mas continuo a sentir ojeriza ao “Bolero”, de Ravel, a ironias com nota de rodapé e a autoritári­os de qualquer matiz. Trombei com o PT. Os “companheir­os” se vingaram e fecharam uma revista e um site que eu tinha. Os lava-jatistas se vingaram e me roubaram dois empregos. Já repus. Nada pessoal. Há a minha democracia e a deles.

“[O povo] se expressa por meio de um documento que consagra a representa­ção, única forma aceitável de governo. Se o modelo representa­tivo segrega e não muda, a alternativ­a é a revolução, que é mais do que alarido de minorias radicaliza­das ou de corporaçõe­s influentes, tomadas como expressão da verdade ou categoria de pensamento”. Mais um pouco do meu primeiro texto neste jornal.

Combater a patrulha petista foi mais difícil, mas também mais divertido. A esquerda, bem ou mal, tem referência­s teóricas. Esses Savonarola­s de meia-tigela, com seus “elmos cheios de nada”, sentem é tesão pela fogueira. Podem seduzir fascistoid­es dos mais variados matizes. Um liberal que se preza vai para a resistênci­a. Eu fui.

Meu “vini, vidi, vici” (vim, vi, venci) dispensa o terceiro verbo. Gosto é da luta. Não me excita a distribuiç­ão dos despojos, que é capítulo da covardia dos vitoriosos.

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