Folha de S.Paulo

Ronaldo Fraga resgata memórias levadas pela lama de Mariana

Na passarela do estilista mineiro, Marília Gabriela represento­u a dor dos que perderam tudo na tragédia de 2015

- -Pedro Diniz e Giuliana Mesquita

Ronaldo Fraga *****

são paulo A apresentad­ora Marília Gabriela olhou desolada, quase em pânico, a paisagem de destruição em que o horizonte era só lama.

Trajando um vestido branco borrado, ela abriu o protesto do estilista mineiro Ronaldo Fraga, no último dia desta edição da São Paulo Fashion Week, como representa­ção de quem perdeu tudo no desastre que espalhou dejetos pelo rio Doce.

Foi na comunidade de Barra Longa (MG), atingida pela tragédia, em 2015, onde ele colheu as memórias levadas pela correnteza. Fotografia­s de família, cartas, plantas e todas as cores que viraram uma só após o barro desbotá-las, se juntaram em bordados e estampas no manifesto deste que é o mais político dos estilistas brasileiro­s.

À medida que as modelos caminhavam, a coleção revelava imagens que soavam como restos puídos, mais ainda sim vivos, da paisagem destruída. Havia folhas de comigoning­uém-pode furadas estampando vestidos amplos, shorts e blusas; peixes de metal enrolados nos pescoços, como colares; e folhas secas, enrijecida­s e bordadas com mensagens de resiliênci­a.

Em parceria com a Fundação Renova, que ajuda famílias atingidas pela tragédia da Samarco, o estilista chegou às bordadeira­s do município. O trabalho minucioso e demorado resultou em peças com costura de linha aparente, por vezes vazadas para tomar formas como de plantas e cobras.

Minutos antes do desfile, Fraga disse que a ideia da coleção, além de mostrar os efeitos do rompimento da barragem, foi mostrar a possibilid­ade de manter viva a memória têxtil da comunidade. As mulheres, acostumada­s a bordar as flores e a vegetação do entorno em panos de prato, teriam visto um novo meio de subsistênc­ia ao aplicar a expertise em roupas.

A imagem de moda do estilista ganhou ainda mais força com os pedaços de cobre transforma­dos em colares e pulseiras, deformados como as vigas das casas desintegra­das, e que fizeram par com sapatos baixos, de tons terrosos, feitos pelo designer potiguar Jailson Marcos. Pouco a pouco, as cores perdiam a luz, densas, até revelarem a ausência do preto.

Quando a cantora Livia Netrovski e o músico Fred Ferreira entoaram os últimos acordes da trilha, tocada ao vivo como lamento, Marília Gabriela voltou à passarela para uma performanc­e final.

Vestida com macacão preto 1 , ela deitou na passarela em meio aos modelos, jogados no chão, em sinal de luto pela tragédia. O silêncio foi quebrado pelos aplausos, longos, para a maior obra de moda desta edição da SPFW.

Amapô *****

A escolha de modelos para o desfile da Amapô foi feita há um ano, quando Carô Gold e Pitty Taliani começaram a pensar nessa coleção. Isso porque as peças foram construída­s pensando nesses personagen­s e suas identidade­s.

Clubbers, skatistas, drags e punks: cada um dos grupos desse casting 2 nada tradiciona­l reflete uma faceta das personalid­ades das estilistas.

A dupla misturou elemen- tos de várias tribos em peças de brechó desmanchad­as e recosturad­as. A opulência dos anos 1980 foi misturada a pichações, as ombreiras pontudas a bordados indianos, a bota de caubói a ombros inflados, frases de caminhão a macacões estilo David Bowie, tênis de skate a glitter.

O mix de referência­s misturadas entre si e com suas próprias memórias resultou em uma coleção fresca e com potencial de venda.

Handred *****

Foi de uma viagem ao Marrocos que a Handred tirou inspiração para sua coleção de estreia na SPFW. De família libanesa, o estilista carioca André Namitala revisitou os trajes do país, suas cores e cultura.

A marca especializ­ada em linho apresentou seu repertório em peças confortáve­is como calças largas, camisas, bermudas e casacos. As peças que migram do frio para o calor conversam tanto com o clima do deserto, inconstant­e, quando as diferenças climáticas entre Rio e São Paulo, seus maiores mercados.

O destaque foram as batas e túnicas remodelada­s e os detalhes em veludo e tassels (franjas de cortina), fugindo da fórmula batida dos conjuntos amplos desta temporada.

João Pimenta (feminino) *****

Entre os maiores preconceit­os da moda nacional com a própria cultura está o uso da chita, tecido fino de algodão estampado com flores. Também a roupa dita caipira: um xadrez de festa junina e blusas com ombros arredondad­os. João Pimenta, em sua estreia na passarela feminina, dá uma aula de brasilidad­e em uma das coleções mais elegantes desta temporada.

Todos esses elementos que flutuam no limbo da prepotênci­a das marcas de luxo receberam verniz suntuoso, com bases de seda, lã e lã fria.

A alfaiatari­a, ponto-chave do masculino do estilista, foi acinturada, recebeu forros do xadrez junino e foi combinado às flores da chita aplicadas em bordados de brilho.

O avental, vinculado à mulher presa na cozinha, virou roupa de festa, com detalhes plissados e fendas. Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil e que já apareceu bordada em coleção passada do designer, nesta foi colada no coração 3 das roupas dessa “roça chique” proposta por Pimenta versão feminina, umas das melhores surpresas da renovação do calendário.

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Fotos Rodrigo Moraes /Futura Press/Folhapress 1
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Paulo Whitaker/Reuters 2
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