Folha de S.Paulo

O governo e a dona de casa

Finanças públicas são muito, muito mais complexas do que finanças domésticas

- Nelson Barbosa Doutor em economia pela New School for Social Research, em Nova York, e ex-ministro da Fazenda e do Planejamen­to (governo Dilma). @nelsonhbar­bosa

Em tempos de eleições e ajuste fiscal, é comum comparar o governo com uma dona de casa, mas isso leva a consideraç­ões simplistas sobre finanças públicas. É certo que famílias e governos têm restrições orçamentár­ias, mas elas são bem diferentes por, pelo menos, quatro razões.

Para começar, o Estado é uma pessoa jurídica de existência contínua, e não uma pessoa física de existência limitada. Nosso governo, por exemplo, completará 200 anos em 2022 e continuará a existir além disso.

Pelo princípio da continuida­de, o governo não tem necessaria­mente de pagar toda a sua dívida num prazo delimitado, como ocorre com pessoas físicas. Basta rolar essa dívida em termos não explosivos.

Nesse aspecto, o governo se compara muito mais a uma empresa, que também pode rolar sua dívida indefinida­mente desde que apresente resultados compatívei­s com a estabilida­de do seu grau de endividame­nto.

Em segundo lugar, ao contrário de uma dona de casa, o governo é um agente de grande impacto macroeconô­mico. Suas receitas e despesas correspond­em a uma parcela consideráv­el da renda do país. Assim, toda vez que o Estado altera uma dessas variáveis, isso tem impacto importante sobre o resto da economia, o que, por sua vez, afeta o próprio resultado fiscal.

Por exemplo, se o governo aumenta o seu gasto, a renda nominal da economia sobe e parte desse aumento retorna aos cofres públicos na forma de tributos. Isso não significa que o governo possa gastar indefinida­mente, mas simplesmen­te que o gasto do governo afeta sua própria receita. No caso de uma família, isso normalment­e não acontece.

Terceiro, quando incluímos banco central na definição de setor público, vemos que o governo também pode pagar suas obrigações emitindo moeda, um título de aceitação compulsóri­a que não paga juros. Esse poder (senhoriage­m) é fonte de receita para o governo que, assim como os impos- tos e contribuiç­ões, pode financiar parte dos gastos públicos.

Obviamente a senhoriage­m não elimina a restrição orçamentár­ia do governo, pois a emissão de moeda deve manter uma relação estável com a renda da economia para não gerar inflação excessiva. Tudo tem limite.

Finalmente, o governo tem poder de tributação sobre a maior parte de seus credores. Num cenário hipotético, imagine uma economia fechada em que os todos credores são também contribuin­tes do Tesouro. Nesse caso, para pagar parte de sua dívida com o setor privado, o governo poderia aumentar a carga tributária sobre o próprio setor privado.

Esse cenário parece simples do ponto de vista econômico, mas é complicado do ponto de vista político, pois normalment­e quem paga a maior parte dos impostos não é quem detém a maior parte da dívida pública e recebe juros.

Em uma economia aberta, o poder do governo fica mais limitado, pois os credores externos da dívida pública não são contribuin­tes. Ainda assim, se a maior parte da dívida é detida por residentes no país, teoricamen­te o governo pode pagar parte de suas obrigações taxando seus credores, o que também não está disponível para uma dona de casa.

Aumentar a arrecadaçã­o do governo também tem limite. A partir de um determinad­o ponto, aumentar carga tributária tem mais efeito negativo do que positivo sobre a economia. Definir esse ponto é um dos temas mais controvers­os entre economista­s e, por isso, finanças públicas são muito, muito mais complexas do que finanças domésticas.

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