Folha de S.Paulo

O toque da marimba

Se olhar pela janela verei o quê? Alguém sendo bastante faceiro fora do Instagram?

- Tati Bernardi Escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão, tem seis livros publicados

Só de lembrar, meu corpo inteiro arrepia. A angústia foi tamanha que me deu a velha conhecida compulsão por álcool gel, a mão está agora seca, ardida, trincada. Foi uma experiênci­a tão fora da realidade que a casa inteira parecia em desordem, empoeirada, desalinhad­a. O teto chegou a ficar preto, só não desmaiei porque meu marido, ao ouvir o toque da marimba (também conhecido como o mais absurdo dos sons) correu para me acudir.

É isso mesmo? O celular está tocando? Não pode ser. Se eu olhar pela janela agora verei o quê? Alguém sendo bastante faceiro fora do Instagram? Uma longa, quase bem articulada e completame­nte inútil discussão em nome da “verdade absoluta” fora do Facebook? Um pombo trazendo um emoji?

Mas foi isso mesmo. Na manhã da última terça-feira, minha amiga Carolina resolveu me telefonar. Eu sei que você está se perguntand­o o que leva um ser humano, ainda mais um com este nome tão delicado, a cometer tamanho descaramen­to. Falei disso na terapia, debati o infortúnio em ao menos cinco grupos de WhatsApp. As conclusões são muitas e, portanto, nenhuma.

Talvez ela estivesse mergulhada em um tédio tão lamacento que a sujeira uma hora alcançaria sua reputação. Pode ter sido flashback de um ácido batizado da década passada. Tem gente apostando em vingança, falta de caráter, maldade no coração. Uma coisa é certa: serviu de alerta. Todos os amigos em comum bloquearam Carolina. Vai que ela resolve transforma­r seu surto psicótico em rotina.

Naquele dia, o nojo me impossibil­itou almoçar. Pra conseguir lanchar à tarde, tive que antes limpar minha aura com muito chá de hortelã. Desculpem-me a riqueza de detalhes sórdidos, mas eu preciso desabafar: a voz de Carolina saía em tempo real do aparelho. E, pior: eu era obrigada a responder também em tempo real. Quem se lembra de quando éramos subjugados a esse ponto? Até fiquei quieta uma hora, pra ter certeza se era isso mesmo. E ela do outro lado: “alô? Alô!”. Quem se recorda do afrontoso “alô”?

Então inventam essa obra divina chamada “mensagem de áudio”. Essa maravilha que nos possibilit­a controlar o tempo da escuta e da fala. Essa joia que nos permite não apenas sermos sozinhos e egoístas mas sermos tudo isso rodeados de “amigos”. Esse milagre que nos autoriza a não escutar o outro ou escutá-lo apenas quando quisermos ou ainda 200 vezes até ter certeza se estamos irritados, enfadados ou com tesãozinho. E chega essa garota e nos atira na latrina de um tenebroso passado recente em que éramos obrigados a interagir sem edição?

Carolina, e aqui não podemos negar certa coragem (ou insanidade), ignorou por completo a maior conquista desse século e me telefonou. Quis “saber como andam as coisas”. É tanta falta de educação que eu, confesso, fiquei paralisada a ponto de responder “tudo bem, e você?”. Ela queria FALAR comigo. Por um aparelho chamado celular. Esse aparelho que tanta alegria nos traz quando utilizado para todas as milhares de coisas de que é capaz (quando não está altamente desqualifi­cado por uma chamada telefônica). Usar o celular para telefonar é mostrar que você não entendeu nada sobre os últimos dez anos. Não entendeu nada sobre “a onda dos dedões com tendinite nas melhores clínicas fisioterap­êuticas”. Não compartilh­a da obsessão da moda: se trancar no quarto para promover “a devida masturbaçã­o da própria imagem”. E, mais grave: não entendeu para que serve esse aparelho caríssimo que você salva antes dos seus joelhos quando cai na rua.

Ainda não existe lei que criminaliz­a o mais temível tipo de meliante. Carolina está por aí, livre, leve, solta e, socorro, provavelme­nte telefonand­o para as pessoas.

Oscar Vilhena Vieira,

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