O homem das capas
Documentário resgata vida e obra de Rogério Duarte, nome influente da contracultura
são paulo Num poema, o tropicalista Rogério Duarte (19392016) se declarou marginal porque “a margem fica dentro do Rio”. Nome influente nos bastidores da contracultura no Brasil, à margem e dentro da tropicália, o designer baiano tem a sua trajetória apresentada pelo documentário “Rogério Duarte, o Tropikaoslista”, de José Walter Lima, em cartaz nos cinemas.
A conversa exuberante de Duarte fascinou artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil , Hélio Oiticica e Glauber Rocha, dos quais se tornou um colaborador menos oculto do que gostava de alardear em defesa de sua marginalidade.
Foi também criador do cartaz de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” 1 , de Glauber, e das capas de discos tropicalistas de Gilberto Gil 9 , Caetano Veloso 8 e 10 , Jorge Mautner 11 e Gal Costa 12 , obras-primas do design nacional.
Ele se dizia mais próximo da estética de Oiticica, com quem organizou a mostra coletiva “Apocalipopótese”, em 1968.
“Conheci Rogério no Solar da Fossa (pensão em Botafogo), no Rio, nos anos 1960. Resolvi fazer o documentário quando soube que ele estava muito doente [com câncer de garganta]”, diz Lima, 69, exprodutor do projeto de livro “Musicor”, jamais concluído por Duarte na década de 1970.
O diretor baiano de “O Tropikaoslista” foi assistente de direção de “Meteorango Kid” (1969) 2 , de André Luiz Oliveira, célebre longa do cinema marginal cujo cartaz psicodélico é assinado por Duarte.
Lima conferiu protagonismo ao designer na narração de sua própria vida, enquanto os parceiros tropicalistas surgem como intérpretes. Caetano canta a canção “Gayana”, de Duarte —incluída no álbum “Abraçaço”, de 2012—, e Gil toca a sua recente “Não Tenho Medo da Vida”, nascida de um papo com o amigo.
“Procurei fugir da mesmice do documentário em que todo mundo fala. Como Rogério era brilhante, quem tinha que falar era ele mesmo. Optei pelo que poderia chamar de doc-arte, um cinema poético-político”, diz o diretor.
O pensamento anavalhado de Duarte brilha em alguns trechos do documentário, que refaz um itinerário artístico traumatizado pela tortura sofrida ao lado de seu irmão Ronaldo, depois de sequestrados pelo Exército na saída da missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, em 1968.
Sua contribuição à contracultura tem uma face visível, o design (cartazes do cinema novo —“A Idade da Terra” 5, “Grande Cidade” 3 e “Opinião Pública” 4 , do cinema marginal —“Cara a Cara” 6 — capas de discos e desenho do jornal alternativo Flor do Mal 7.
A outra é refletida na obra alheia, influência exercida em diálogos livres de cerimônias.
“Há um componente político na tropicália que foi um pouco esquecido. Se formos falar do nosso tropicalismo, da tropicália do Hélio [Oiticica], também do Caetano, sem dúvida nenhuma... Não essa coisa que diz que é da música popular, que virou grife meio colonizada, também muito importante, mas [que] não tem a mesma contundência de protesto, de manifestação, de revolução, de transformação no nível político”, afirma Duarte no filme.
Perto do fim, não parece autoindulgente: “Chafurdei na lama mesmo, entendeu? Não é humildade dizer isso, não. Porque quem sabe de mim sou eu. Sei o quanto sou luxurioso, mesquinho, avarento, invejoso, pirado, desconfiado e qualquer coisa a mais que você possa botar. Covarde, mentiroso... Acontece que eu não gosto [de ser assim]”.
Ele morreu em 2016, mas chegou a ver o filme pronto, em Salvador, num sítio hare krishna, movimento ao qual pertencia desde os anos 1970.
Duarte traduziu do sânscrito o “Bhagavad Gita” e o poema “Gitagovinda”, de Jayadeva —este, “A Cantiga do Negro Amor”, deve virar uma ópera musicada por Gilberto Gil e Aldo Brizzi, maestro italiano.
A viúva, Telma Duarte, quer organizar uma retrospectiva de sua obra gráfica e musical. Lima defende a atualidade do biografado: “É preciso fazer uma nova revolução cultural, mas agora uma permanente”.
Rogério Duarte, o Tropikaoslista Brasil, 2017. Direção: José Walter Lima. 12 anos. Em cartaz Inácio Araujo
são paulo “Tropikaoslista” começa por achar um bom personagem, na pessoa de Rogério Duarte, intelectual múltiplo (de designer a compositor) quemarcoucomopoucosgerações de criadores dos anos 60.
Em seguida, o diretor José Walter Lima toma outra boa providência, que consiste em narrar a trajetória dele sem recorrer a depoimentos, que não os do próprio. Com isso, intervenções exteriores surgem na forma de poemas (Carlos Rennó) ou músicas (Gil e Caetano).
Como acontece com frequência, essa história começa na Bahia, na agitação cultural de Salvador dos anos 1950, e prossegue no Rio, para onde Duarte vai em 1962, logo se ligando ao designer Aloísio Magalhães e ao CPC da UNE, do qual se torna diretor de arte.
Como acrescenta a isso um amplo cenário do que foram as artes brasileiras à época (Helio Oiticica, Lygia Clark, Glauber Rocha), o filme se abre promovendo uma rica associação entre o personagem —que circula e influencia tantas atividades— e, como decorrência, anunciando o panorama da atividade cultural sob a ditadura.
O que ocorre depois é o exílio interior (“inxílio”, ele denomina). E a obra o segue em sua deriva: esconderijo, trabalho como agricultor, misticismo.
Se isso permite conhecer melhor sua trajetória, vivacidade, capacidade de adaptação ligada a uma percepção intelectual privilegiada, de algum modo também distancia o filme daquilo que anunciara.
Ou seja: deixa no ar a pergunta sobre o destino dessa geração. O que, afinal, ela produziu de efêmero ou duradouro? O que resta ou restou desse momento a um tempo tétrico e luminoso?
“Tropikaoslista” segue o caminho inverso ao de “Uma Noite em 67”, que, partindo de uma noite em um festival de música, acaba produzindo uma imagem forte da época.
Temos de início um Rogério Duarte ativo na vida intelectual, circulando por diversos meios, produzindo. Temos no final um Rogério Duarte sempre interessante e intransigente, mas retirado e místico.
Talvez corresponda, com exceção dos personagens forçosamente midiáticos (Gil, Caetano), à trajetória da geração.
Na segunda parte, o filme se separa um tanto daquilo, mais amplo, que promete no início. Pode ser culpa do Brasil ou de as coisas terem se passado com ele como se passaram.
O longa se enfraquece, mas sem nunca se perder, sem trair o personagem, sem jamais se valer de facilidades que tanto contribuem para levar certos filmes ao sucesso.
CRÍTICA Obra deixa no ar a pergunta sobre a geração de Duarte. O que, afinal, ela produziu de efêmero ou duradouro?