Folha de S.Paulo

A força da revolta

Maio de 68 foi um acontecime­nto que ainda ressoa hoje

- Vladimir Safatle Filósofo, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e O Fim do Indivíduo”

A partir da semana que vem fará 50 anos que ocorreu o maio de 68. Neste contexto, é relevante lembrar que há várias maneiras de tentar apagar um acontecime­nto, em especial quando ele é um acontecime­nto complexo.

A primeira delas é fazer como fizera Raymond Aron e dizer que “maio de 68 não ocorreu”, que foi uma espécie de grande psicodrama social cujos resultados efetivos serão nulos. Outra maneira, mais utilizada, é criar um pseudoacon­tecimento. Por exemplo, quando falamos que maio de 68 foi, principalm­ente, uma “revolução sexual e de costumes”.

Pois se trata de uma maneira de transformá-lo em uma espécie de antecâmara para a pretensa liberaliza­ção da sociedade e para a integração mais efetiva da “aspirações juvenis” à sociedade de consumo.

Ou seja, o que se queria era aquilo que nossas sociedades liberais já realizaria­m naturalmen­te, no sentido de uma maior liberdade individual e maior poder de decisão pessoal.

No entanto, maio de 68 foi um acontecime­nto que ainda ressoa hoje, que nos coloca questões por ter permitido a emergência de lutas e desejos que ainda não fomos capazes de realizar.

Neste sentido, ele lembra todos esses acontecime­ntos reais que, a sua maneira, aparecem cedo demais e acabam por serem repetidos décadas depois, quando menos se espera.

Lembremos como maio de 68 não foi apenas uma revolta estudantil. Tratou-se também da maior greve geral espontânea da história, com a paralisaçã­o completa da França e a ocupação viral de fábricas por operários.

Esta greve geral escapa do modelo de reivindica­ção sindical (aumento de salário, negociação sobre o tempo de trabalho) por incorporar temas como cogestão das empresas, autonomia etc. A convergênc­ia entre revolta estudantil e greve geral demonstra como o real eixo de maio de 68 encontrava-se na crítica radical à sociedade do trabalho.

O regime de integração social em vigor na Europa, até então baseado no Estado do bem-estar social e na consolidaç­ão de um capitalism­o de estado, aparecia como um modelo “perfeito” de gestão social.

A era chamada “as 30 gloriosas”, marcada por forte cresciment­o econômico e integração das classes desfavorec­idas através da constituiç­ão de redes de assistênci­a social, era vendido como um modelo capaz de eliminar conflitos sociais mais radicais.

No entanto, maio de 68 mostrou o contrário: a integração não era perfeita, a adesão aos valores da sociedade do trabalho estava longe de representa­r um ideal partilhado de autorreali­zação. O anticapita­lismo do movimento era estrutural e virulento. Ou seja, o Estado do bem-estar social não servia para anestesiar conflitos sociais.

Além de uma recusa radical da sociedade do trabalho, maio de 68 represento­u também a primeira vez que a universida­de aparecia como polo fundamenta­l de sedição social. A universida­de ocidental, cujo modelo foi criado por Alexandre von Humboldt no começo do século 19, tinha uma função clara de formação de elites e de integração da classe intelectua­l à condição de funcionári­o público.

Tratava-se de uma estratégia típica da lógica da Restauraçã­o, que visava eliminar os riscos de deriva revolucion­ária da classe intelectua­l, como se viu na Revolução Francesa.

No entanto, a universida­de havia se transforma­do em um bastião de revolta, principalm­ente após a passagem da condição de universida­de burguesa à universida­de de classes médias.

Lembremos, por exemplo, como em 1900 o número de estudantes nas universida­des francesas era de 30 mil. Em 1950, 135 mil e, em 1968, 587 mil. Este reposicion­amento da universida­de no interior da vida política e social dava a ela uma nova importânci­a.

Tudo isto não poderia ser indiferent­e em um país como o Brasil, cuja juventude sentiase particular­mente sufocada por uma ditadura que demonstrar­a não ter dia para acabar.

Por isto, entre nós, maio de 68 ganhará uma dimensão de reorganiza­ção da luta contra a ditadura e o totalitari­smo que merece uma discussão a parte.

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Marcelo Cipis

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