Folha de S.Paulo

MÔNICA BERGAMO Para Caco Barcellos, a violência é contra pobre, não bandido

‘Rota 66’, livro do jornalista sobre brutalidad­e da polícia, será transforma­do em filme; ‘Elites da sociedade organizada matam junto’, afirma ele

- João Carneiro

Caco Barcellos acena com a cabeça para responder que sim, ele já pensou em desistir de ser repórter.

“Eu fico indignado com a nossa pouca importânci­a. A gente não representa nada. Representa­mos muito pouco em relação ao conjunto”, explica ele. “Você não vai acreditar, mas é a absoluta verdade: eu achava que por meio da minha pesquisa eles iriam parar de matar. Eu tinha essa ingenuidad­e.”

O jornalista se refere ao premiado livro “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”, lançado por ele em 1991, que revelou um grande número de assassinat­os cometidos por membros das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), grupo de elite da Polícia Militar de São Paulo.

A obra servirá de referência para um longa-metragem que começará a ser filmado neste ano. A trama, com um protagonis­ta livremente inspirado em Caco, mostrará os passos de sua investigaç­ão sobre a atuação dos policiais. A produção é da Boutique Filmes.

Ele conta que se tornou jornalista por “muita sorte”. Estudava para ser engenheiro, em Porto Alegre, quando se interessou na produção de um jornal do centro acadêmiban­didos”. co do curso. “E os únicos que toparam fazer o jornal foram um grupo de hippies da universida­de. No primeiro mês, já estava morando com eles e fazendo, na verdade, um jornal para a comunidade hippie”, conta, rindo.

Mais tarde, um jornalista que viu a publicação o convidou para um estágio na redação de um diário da cidade, e Caco mudou de curso para seguir a carreira. Em 1982, entraria na Globo, onde hoje comanda o Profissão Repórter, programa de jornalismo investigat­ivo com profission­ais recém-formados. Ele agora vive em São Paulo.

Caco diz que concorda parcialmen­te com a afirmação, feita pelo jornalista Narciso Kalili na apresentaç­ão de “Rota 66”, de que ele seria um re- pórter “que tem lado” –o “dos mais fracos, o das vítimas”. “Acho que é dever do repórter estar sempre retratando o universo da maioria, e não o das minorias. Não é o que se vê, mas acho que é o nosso papel”, afirma.

“Se eu estivesse morando na Suíça, eu tinha que estar mostrando o universo dos Jardins todo dia. Mas a gente mora numa grande Etiópia de mais de 100 milhões de pessoas pobres e miseráveis. E acho que eles têm que ter uma voz mais ativa, um retrato mais forte que as minorias que não passam de 1% da sociedade brasileira.”

A relação de Caco com a polícia começou cedo. Em um capítulo do livro, ele narra sua própria fuga de uma viatura no bairro periférico em que morava, em Porto Alegre. “Nada fiz de errado, mas sei que devo fugir”, diz um trecho. “Antes de ser profission­al, a informação batia na minha cara, no meu corpo, no dos meus amigos”, comenta.

“Desde que eu comecei a ler, fui um admirador dos escritores que tinham uma vida intensa fora da atividade intelectua­l. Que levavam para as páginas de seu romance de não ficção o que viveram na pele. Por exemplo, Jack London, [Ernest] Hemingway. Talvez por influência deles, depois que virei repórter, fiquei tratando de estar muito perto dos acontecime­ntos.”

A intenção inicial de Caco em “Rota 66” era demonstrar “o absurdo que é um país contrário à pena de morte praticá-la cotidianam­ente contra Ele diz que ficou “extremamen­te assustado” ao constatar, após sete anos de investigaç­ão, que a violência se dava “não contra os bandidos, mas contra os pobres”.

O jornalista conta que 63% das pessoas mortas que contabiliz­ou nunca haviam cometido crime. “Estavam mortos, desqualifi­cados moralmente pela imprensa. As famílias ofendidas pelo Estado, e a imprensa reproduz aquilo que o Estado diz”, afirma. “Infelizmen­te, na área de segurança pública, o Estado brasileiro é inimigo dos mais pobres.”

Ele critica os repórteres que reproduzem, sem apuração, as versões da polícia sobre supostos crimes. “Quem é o jornalista pra dizer que alguém é bandido? Que pretensão é essa? Que arrogância é essa? Não foi no local e chama: ‘Bandido!’. É relato do coronel. Você não é coronel! Se quer fazer esse relato, que tire o microfone e pegue numa arma.”

O Brasil, diz Caco, não tem pena de morte apenas “entre aspas”. “É um Estado que não dá o menor respeito ao suspeito de algum ilícito. Antes da investigaç­ão, mata. E sempre diz: legítima defesa. Legítima defesa. E o Judiciário mata junto, o Ministério Público mata junto quando nem sequer investiga a maioria desses crimes. Arquiva. Arquiva. Arquiva. Milhares de vezes por ano.”

“Claro que [a impunidade] contribui com a mentalidad­e corporativ­a, orientada pelos coronéis que dizem ‘Mata, que tem tudo a nosso favor’. Quando eu falo do Estado, não tô querendo só apontar a polícia como sendo a filósofa da execução. Acho que as elites da sociedade organizada matam junto, nesse sentido figurado.”

Caco faz questão de pontuar, em duas ocasiões da entrevista, que os autores de assassinat­os na polícia são uma minoria e afirma que é “radicalmen­te defensor dos policiais corretos”. “É uma sacanagem ficar acusando a polícia. É um sistema que envolve todo mundo”, afirma.

“Tem muita gente bacana atuando. [Também] no Ministério Público, juízes. Mas tem juízes como aquela do Rio de Janeiro que fez aquela desqualifi­cação moral da Marielle Franco[referindos­e à desembarga­dora Marilia Castro Neves, que disse que a vereadora estava “engajada com bandidos”]. Olha o nível de uma mulher como essa! Vai ver o trabalho dela, como é que ela faz a caneta dela. Explica muita coisa.”

Ele evita responder perguntas sobre a intervençã­o federal no Rio de Janeiro e o assassinat­o da parlamenta­r, dizendo que está trabalhand­o nos temas para a Globo. Afirma, porém, que a morte de Marielle faz parte “desse cenário de cultura da violência”, e que o fenômeno da desmoraliz­ação de sua imagem após o ocorrido é “típico do matador”.

Diz também que não consegue opinar sobre a prisão e posterior soltura, na quarta (25), de 137 supostos membros da milícia carioca, porque não investigou os fatos. “Eu não quero me misturar com opinião”, dizia ele em outro momento. “Se eu tenho alguma importânci­a, é no que eu faço [jornalismo noticioso].”

“Uma vez, uma TV me convidou pra ser apresentad­or de um programa. Falei: ‘Cara, como é que você me convida pra ser apresentad­or? Não posso dizer que eu seja um grande repórter, mas não estou entre os piores. Agora, como apresentad­or, com certeza eu tô entre os piores!’”, diz. “Eu adoro a rua, e tem gente sabida dando opinião demais, e menos na reportagem.”

Quem é o jornalista pra dizer que alguém é bandido? Que pretensão é essa? Não foi no local e chama: ‘Bandido!’. É relato do coronel. Se quer fazer esse relato, que tire o microfone e pegue numa arma

Aos 68 anos, Caco continua fazendo matérias em condições adversas. Recentemen­te, viajava para o México para acompanhar, sob o sol, o périplo de imigrantes que tentam cruzar a fronteira americana –ele conta que as experiênci­as são “uma alta diversão”. “Eu não quero perder aquela chance de estar lá”, diz.

 ?? Arquivo Pessoal ?? Caco em sessão de autógrafos da obra, em 1991
Arquivo Pessoal Caco em sessão de autógrafos da obra, em 1991

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