Empresário de João Gilberto atuou na USP pela ditadura
Krikor Tcherkesian chefiou serviço de informação na universidade antes de trabalhar com o pai da bossa nova
Krikor Tcherkesian foi empresário de João Gilberto por quase 20 anos. Sua vida tem um lado B: nos anos 1970, foi chefe do serviço de informação da ditadura militar na USP, relata Marco Rodrigo Almeida.
“Eu atendia às necessidades da ordem. Estava ligado em tudo, tudo o que ocorria na USP.”
são paulo Como um disco, Krikor Tcherkesian tem um lado A e um lado B. Ouvi-los em sequência é uma experiência dissonante, mas o descendente de armênios encontrou uma harmonia incomum para tocar sua vida.
A trajetória musical é conhecida por amantes da bossa nova: foi empresário —um faztudo, define— do cantor João Gilberto por quase 20 anos.
Há um aspecto de sua vida, porém, ignorado até por amigos íntimos. No começo dos anos 1970, Krikor foi chefe do serviço de informação da ditadura militar instalado na USP.
Relatório da Comissão da Verdade da instituição, divulgado no final de março, aponta que ele comandou a Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi) da universidade, cuja missão era monitorar professores e alunos.
Criado na gestão do reitor Miguel Reale, o órgão produziu documentos difundidos para as Forças Armadas, o SNI (Serviço Nacional de Informações), o Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo) e polícias.
“Em muitos casos, a vigilância resultou em prisão, morte, desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de pesquisa acadêmica”, diz a comissão.
Por 40 anos Krikor manteve-se calado a esse respeito. Avalia que agora é hora de falar para reestabelecer o que chama de verdade verdadeira.
Receoso nos primeiros contatos, por telefone, revelou depois, em dois encontros com a Folha, evidente prazer em comentar sua trajetória.
Falante, bem-humorado, de passo firme e óculos de sol no rosto, aparenta menos que os 80 anos que completará na próxima terça (1º). Num tom de voz quase sempre elevado, temperado por alguns palavrões, disparou infindáveis histórias de sua vida.
Num primeiro momento, custa crer que esse senhor bonachão seja de fato o homem citado pela Comissão da Verdade, alguém cuja atividade exigiria discrição e método.
Mas ele de pronto desfaz a dúvida e confirma os fatos, com indisfarçável orgulho. “Sim, fui indicado pelo Ministério da Educação para implantar esse serviço na USP.”
A versão de Krikor: havia no governo militar uma grande implicância contra a USP, cujos pleitos eram todos negados. Reale, reitor de 1969 a 1973, levou a queixa ao então ministro da Educação, Jarbas Passarinho, que teria sugerido eleger uma pessoa que pudesse estreitar o relacionamento com o MEC.
O irmão de Krikor, Arminak, integrava a Divisão de Segurança e Informação do ministério, o que deve ter determinado sua indicação.
Krikor foi admitido na USP em maio de 1972. Em outubro daquele ano, encaminhou um ofício confidencial ao MEC em que se apresentava como assessor especial de segurança e informação da universidade.
Pouco antes cursara a Escola Nacional de Informação, que capacitava seus alunos para os serviços de inteligência. “Em outras palavras, nos preparava para ser agentes secretos do SNI”, explica.
Criado pelos militares em 1964, o SNI tinha agentes infiltrados na administração pública e privada. “Eu atendia às necessidades da ordem. Estava ligado em tudo, tudo o que ocorria na USP.”
A ênfase não parece exage- rada. A Comissão da Verdade localizou 2.895 documentos sobre a USP produzidos no período de 1973 a 1979.
“Os comunistas atuavam direto lá, queriam fazer a cabeça dos alunos”, diz Krikor. “Então, quando um professor era indicado para uma vaga, a gente levantava a vida do cara. Se o camarada tivesse participação em atividades terroristas, tivesse passado por Cuba ou China, era vetado.”
Krikor estima que cerca de cem pessoas foram barradas por seu setor. Uma delas foi a professora Maria Hermínia Tavares de Almeida. Indicada a uma vaga na USP em 1973, teve sua vida investigada.
O relatório produzido apontava sua participação em movimentos de esquerda e a qualificava como elemento subversivo. “Tínhamos conhecimento da Aesi, mas só fui saber de Krikor e do poder que exercia ao tomar parte na comissão”, diz Maria Hermínia à Folha. Ela só passou a dar aulas na USP em 1987.
Krikor argumenta, porém, que também ocorreu o contrário —ajudou a limpar a ficha de pessoas chamadas indevidamente de comunistas.
“Teve também o caso do Darcy Ribeiro. Uma vez o professor Reale recebeu um recado de que o Darcy estava muito doente e não queria morrer no exílio. Reale perguntou se eu poderia fazer algo. Falei com o general D’Ávila [comandante do 2º Exército], que conseguiu liberar. Mas aí ele voltou e agitou pra caramba, não morreu coisa nenhuma. Fui enganado”, disse, emendando uma gargalhada.
Também nega que seu trabalho tenha motivado prisões ou mortes. “Meus relatórios eram administrativos, de segurança nacional, sobre assuntos acadêmicos.”
Num determinado momento, porém, o próprio SNI passou a criticar sua atuação. Em janeiro de 1976, afirmou que um documento da Aesi “não era válido” e que Krikor era “inidôneo quer sob o ponto de vista moral, quer sob o prisma funcional”. Era investigado, dizia o SNI, por tráfico de drogas.
“Onde se viu isso?”, questiona ele hoje. “Como alguém com essa ficha teria sido admitido no serviço de inteligência? Havia muita inveja contra mim, sabe.”
O SNI ainda apontou que a Aesi era irregular, uma vez que a lei só previa a criação desses órgãos de vigilância em unidades da administração federal, enquanto a USP é uma instituição estadual.
Em abril de 1976, Krikor pediu exoneração de seu cargo na USP. A Aesi foi mantida pelos dois reitores seguintes a Reale, Orlando Marques de Paiva e Waldyr Muniz Oliva. Só foi extinta em 1982, na gestão de Hélio Guerra Vieira.
“A USP permitiu a implantação de um núcleo de vigilância. Uma coisa é o regime militar perseguir, outra é o reitor institucionalizar esse procedimento”, afirma Janice Theodoro da Silva, presidente da Comissão da Verdade da USP.
Krikor conta que saiu da USP porque a ditadura havia virado uma bagunça. “Era golpe sobre golpe. A desordem se infiltrava no próprio SNI”, argumenta. “Um tentava vender o outro. Decidi que era hora de dar uma virada.”
Trabalhar com João era um tormento, mas fabuloso, diz ele
Findo o período na USP, nascia o lado mais admirado de sua vida, a parceria com João Gilberto. Krikor conheceu o mestre da bossa nova no começo dos anos 1970, quando um amigo pediu ajuda para resolver um enrosco salarial entre a TV Tupi e o músico.
O discreto e metódico cantor e o espalhafatoso e enérgico armênio não pareciam ter nada em comum, mas uma inesperada afinidade surgiu.
Após dar adeus à USP, estreitou os laços com João e tornou-se seu empresário. “Os pepinos que ele arrumava estouravam todos na minha mão. Paguei todos os meus pecados”, brinca.
Teriam ficado ricos, diz, não fosse o comportamento sempre imprevisível do cantor. Uma vez, a gravadora Warner e a empresa aérea Vasp pretendiam patrocinar uma turnê de João Gilberto pelo Brasil. O salário seria altíssimo, bastava assinar o contrato.
“Esse era o meu problema. As semanas passavam e nada de o João assinar. Cada hora era uma desculpa. Então dei uma encurralada nele. ‘Meu, ou vai ou racha. Quer ganhar dinheiro? Tem que assinar.’ Aí ele disse que não ia assinar, pois não queria que os americanos ficassem ricos nas costas dele. Ficamos sem nada.”
Trabalhar com João Gilberto era um tormento, mas também fabuloso. “É um nome fantástico, idolatrado no mundo inteiro. O maior artista do país. Foi uma fase muito boa.”
Ele relembra os bons momentos. Em 1983 acompanhou o músico em um show em Roma. “Foi uma apresentação ao ar livre, lotamos as ruas. Um monte de gente de camisa verde e amarela. Quem nos contratou foi o governo da época, do Partido Socialista Italiano, você acredita?”
Também participou da gravação do disco “Brasil” (1981), reunião de João Gilberto com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. O trabalho valeu a ele o crédito de produtor-executivo e uma úlcera.
“Esse rendeu muita luta, muita encrenca, puta merda... Cada dia um deles queria cancelar o ensaio. Mas ficou um discão no final, consagrado no mundo inteiro.”
Krikor diz nunca ter comentado com João Gilberto ou qualquer outra pessoa da área musical a respeito de seu passado na USP. Circular no meio artístico, em que predomina a esquerda, não foi problema.
“Eu era outra pessoa ali. A parte política não comentava com eles. E nenhum deles era autêntico, era tudo conversa mole de esquerdista.”
E qual seria a orientação política de João Gilberto?
“Nenhuma, indefinido. É biruta, alienado, vive no mundo da lua, não se interessa.” Krikor e o cantor trabalharam juntos até meados dos anos 1990. Conversaram pela última vez há cerca de cinco anos.
Uma expressão de lamento tomou seu rosto ao comentar a situação atual do amigo. Aos 86 anos, o pai da bossa nova está com a saúde e as finanças debilitadas. “Tenho uns amigos empresários que estão dispostos a ajudar João com grana. Vamos ver se resolvemos essa situação.”
Pessoas do meio musical que trabalharam com Krikor preferiram não comentar publicamente sua atuação na ditadura quando informadas do fato pela reportagem. “É inacreditável, né? Parece que algo não liga”, disse uma delas, sob condição de anonimato.
Para Krikor, a passagem de uma fase à outra foi espontânea e agradável como um bom samba. “A minha parte no governo militar é fora de sério. Na música, nem se fala. Mas agora parei, não olho pra trás.”
No fim da entrevista, lança mais uma piada. “Meu plano agora é ir para a Armênia e fazer agricultura familiar. Quem sabe não sigo o programa do PT sobre esse assunto?”
Quando um professor era indicado para uma vaga na USP, a gente levantava a vida do cara. Se o camarada tivesse participação em atividades terroristas, tivesse passado por Cuba ou China, era vetado
João Gilberto não tem preferência política. É biruta, alienado, vive no mundo da lua. Só se interessa por música KRIKOR TCHERKESIAN empresário