50 anos depois, Zé Celso planeja volta da peça ‘Roda-Viva’, de Chico Buarque
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“Roda-Viva”, primeira peça de teatro escrita por Chico Buarque, estreou 50 anos atrás bancada pelo cantor. Desde então, ele vinha recusando reencenação da obra, mas isso mudou. O diretor Zé Celso, do Teatro Oficina, conseguiu autorização e busca financiamento para a produção, que poderá contar com membros do elenco original e canção recente do compositor
O músico José Miguel Wisnik estava no primeiro ano do curso de letras da USP quando assistiu a “Roda Viva”, em São Paulo. Saiu maravilhado, “a ponto de por muitos anos não conseguir ver peças que não fossem as do Oficina, porque aquilo tocava nas questões as mais atuais com uma contundência, mas também com um esplendor de cena”.
Escrita por Chico Buarque de Hollanda e dirigida por José Celso Martinez Corrêa, a peça foi apresentada no teatro Ruth Escobar, em um palco que formava um semicírculo, avançando sobre a plateia.
“Era fascinante aquele coro vindo, de macacas de auditório, se arrastando em direção ao público com aquelas línguas sibilinas, parecendo de serpentes, depois aquele fígado cru”, lembra Wisnik, professor de literatura brasileira na USP.
O espetáculo estreou em São Paulo em 17 de maio de 1968, após temporada no Rio. Exatos dois meses depois, foi atacado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). “Vinte elementos bem vestidos, alguns com terno e gravata, invadiram o teatro”, noticiou então a Folha. “Subiram aos camarins onde as atrizes estavam mudando de roupa. Espancaram-nas, tirando-lhes a roupa, e praticaram atos brutais de sevícia.”
Em outubro do mesmo ano, a pe- ça foi censurada após um novo ataque, agora em Porto Alegre. Zé Celso conta que soldados do Exército tomaram o hotel, agrediram o elenco e embarcaram seus integrantes num ônibus para São Paulo.
Chico Buarque tampouco passou incólume. Em dezembro, foi levado de seu quarto para depoimento no Exército por ter participado da chamada Passeata dos Cem Mil e criado “Roda Viva”. Em 1969, partiu para a Itália. Zé Celso, por sua vez, foi preso e torturado em 1974 e se exilou em Portugal.
Durante mais de três décadas, os dois mal se falaram, a não ser por encontros fortuitos, como numa caminhada na praia do Leblon. Em 2013, o diretor anunciou publicamente o desejo de remontar “Roda Viva”. Não teve resposta. No ano passado, num ato em torno de Lula, no Rio, pediu diretamente a Chico, que desconversou.
Mas, em outubro, uma das filhas do cantor e compositor, a atriz Sílvia Buarque, escreveu um email: “[Meu pai] liberou a montagem de ‘Roda Viva’. E pediu pra te mandar toda a solidariedade dele pelas suas lutas”. Na semana anterior, Silvio Santos obtivera autorização estadual para construir duas torres no entorno do Teatro Oficina, para revolta de Zé Celso.
“Roda Viva” saiu em livro numa única edição, de 1968 (Sabiá). Chico não quis republicar a peça nem permitia que fosse reencenada. A recente liberação pode ser explicada, ao menos em parte, pela mudança no ambiente político do país.
A produção dramatúrgica de Chico se concentra nos anos da ditadura. “Roda Viva” foi sua primeira peça, “um ‘primo canto’ já do embate, de quem tinha passado pela experiência de ser lançado às feras” da indústria cultural nascente, nas palavras de Wisnik. Depois vieram outros musicais de oposição, como “Ópera do Malandro”, dirigido em 1978 por Luís Antônio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso. Passada a ditadura, Chico se voltou ao romance, para realizações “de maior introversão”, e esqueceu o teatro. Mas agora o embate está de volta.
A história de Zé e Chico vem de longe. O diretor, na virada dos anos 1950 para os 60, namorou Heloísa, a cantora Miúcha, irmã mais velha do compositor e com quem este criou as primeiras operetas, como chamavam, na casa da família no bairro do Pacaembu, em São Paulo.
Miúcha conviveu com Zé nos primórdios do Oficina e chegou a ser escalada como atriz em “A Incubadeira” (1959), escrita por ele, mas seus pais proibiram e ela cedeu o papel para uma amiga. “Fiquei tristíssima”, diz, lembrando que o diretor conheceu seu irmão então adolescente —e que se tornaria freqüentador do Oficina.
Depois, Chico foi chamado por Zé para compor uma música para “Os Inimigos” (1966), que abordava alegoricamente os IPMs (inquéritos policiais militares) abertos após o golpe de 64. A canção, de início instrumental, viria a ser gravada por ele como “Acalanto”.
No fim do ano seguinte, depois de apresentar “Roda Viva” no célebre 3º festival da Record, Chico escreveu a peça com o mesmo nome e a levou para Zé Celso encenar.
No documentário “Chico - Artista Brasileiro” (2015), o cantor afirma ter retratado no texto o que estava vivendo, “aquela história do ídolo devorado pela engrenagem, pela rodaviva”, mas “num tom farsesco”, derrisório, ecoando o teatro do Centro Popular de Cultura (CPC).
Isso o distanciava do bom moço de “A Banda”, sua canção de maior sucesso. Foi quando ele deixou de ser a unanimidade nacional, como havia sido descrito pelo humorista Millôr Fernandes.
A encenação foi bancada pelo próprio Chico. “Ele entregou absolutamente tudo produzido, com uma banda maravilhosa, com o Klaus Vianna [1928-92, coreógrafo] para fazer o trabalho de corpo”, lembra Zé Celso com nostalgia.
Entregou a peça também com Flávio Império (1935-85) —cenógrafo e figurinista da montagem “Os Inimigos”— como diretor de arte. Quem participou de “Roda Viva” enfatiza a centralidade de Império para a encenação: embora já consagra- do, ele próprio costurava os figurinos no mezanino do teatro em que o grupo ensaiava.
O cenário que criou —uma tela de TV ladeada por uma estátua de São Jorge e uma garrafa de Coca-Cola— empurrava o elenco em direção à plateia, para atuar no meio dos espectadores. Projeções espalhadas reproduziam fotos de ídolos pop.
Zé Celso lembra que foi seu primeiro espetáculo sob influência das ideias do diretor e teórico polonês Jerzy Grotowski (1933-99). “Ele falava de você criar o sublime e depois puxar o tapete e deixar vir o inferno. Mas era um fanático pela religião católica. O Flávio virou isso do avesso.”
A comédia musical em dois atos conta a história de Benedito Silva, um músico que atende às pressões da indústria fonográfica e da imprensa e troca de nome para Ben Silver, relançando-se como cantor de iê-iê-iê, como era chamado o rock. Depois, adaptando-se às novas demandas, ressurge como Benedito Lampião, um compositor engajado. O movimento incessante continua até que ele se mata para abrir caminho a uma nova estrela: Juliana, sua namorada, que se lança como integrante da Tropicália.
Chico já vivia no Rio e começava um namoro com Marieta Severo, então com 20 anos. Zé foi para lá encenar a peça e de imediato escalou a jovem atriz para interpretar Juliana.
“Não foi por causa do Chico, não”, diz o diretor. “Ela era uma coisa absurda de linda. Era amiga da Leila Diniz, era também boêmia, uma daquelas meninas cariocas belíssimas.”
Marieta conta que o que mais se recorda de “Roda Viva” é a efervescência da época. Os ensaios e as apresentações ocorriam na zona sul do Rio, no Teatro Princesa Isabel, onde também se realizavam, entre outras, reuniões estudantis que culminariam na Passeata dos Cem Mil —a manifestação contra a ditadura aconteceria em junho e contaria com a participação da atriz e de Zé Celso.
“Era 68, pré-AI-5”, diz Marieta, citando o ato institucional que, em dezembro daquele ano, fechou o Congresso e estabeleceu a censura prévia das artes e da imprensa. “Os ensaios estavam imbuídos de tudo o que havia, politicamente, social-
A peça estreou em São Paulo em maio de 1968, após temporada no Rio. Dois meses depois, foi atacada pelo Comando de Caça aos Comunistas