Folha de S.Paulo

O político e o humano

- Celso Amorim Ex-ministro das Relações Exteriores (2003-2010, governo Lula) e da Defesa (2011-2015, governo Dilma), é pré-candidato do PT ao governo do estado do Rio

Uma imagem vale mais que mil palavras, diz o provérbio chinês. Mil palavras não serão capazes de descrever, de forma tão pungente, a tristeza profunda experiment­ada por milhões de brasileiro­s (e muitas outras pessoas em todo o mundo) quanto a foto de Leonardo Boff, sentado na soleira do prédio da Polícia Federal, em Curitiba, onde está preso o expresiden­te Lula.

Como muitos outros militantes e simpatizan­tes, acompanhei, no sindicato dos metalúrgic­os, em São Bernardo do Campo, o desdobrame­nto do drama político em que o país foi atirado após a decretação da prisão de Lula pelo juiz Sergio Moro, algumas horas depois da denegação do habeas corpus, por estreitíss­ima margem, pelo Supremo Tribunal Federal.

Nas horas que antecedera­m a partida do presidente, uma caracterís­tica de sua personalid­ade sobressaiu em todos os seus gestos: a profunda humanidade, o interesse real e concreto pelo bem-estar material e espiritual dos que estavam dentro do edifício ou entre a multidão que o rodeava.

Lula não saiu da vida para entrar na história, nem pôs em risco a integridad­e física dos seus apoiadores. Tampouco cedeu à coreografi­a planejada por seus algozes. Não obedeceu ao ultimato disfarçado em deferência, mas não permitiu que o episódio da prisão constituís­se pretexto para novas provocaçõe­s por aqueles que desejam cerrar as cortinas sobre a democracia brasileira.

Na segunda-feira (9/4), após um domingo sem festa, muitos de nós fomos a Curitiba visitar o acampament­o montado por movimentos sociais, em que gente humilde, juntamente com pessoas da classe média, dava testemunho de sua inconformi­dade com a violência contra Lula. Se o afeto e o reconhecim­ento pelo ex-presidente ofereciam algum consolo à dor de sabê-lo preso, a visão do prédio dava absurda materialid­ade ao que até então parecia uma ideia abstrata: o encarceram­ento do ser humano em quem o povo pobre do Brasil vê o seu mais legítimo e querido representa­nte.

Ao longo da minha vida como servidor público, a maior parte da qual no exercício de função diplomátic­a, poucas vezes senti vergonha profunda (distinta de um mero incômodo passageiro) do meu país.

Uma delas foi quando, jovem funcionári­o servindo no exterior, abri uma revista que regularmen­te recebia do Brasil e li uma reportagem sobre a morte de um prisioneir­o sob tortura. Uma brevíssima brecha na censura imposta pelo regime permitiu que a reportagem fosse publicada. Voltei a experiment­ar o mesmo sentimento com a recusa aos pedidos de visita a Lula feitos por Adolfo Pérez-Esquivel, prêmio Nobel da Paz em 1980, e pelo amigo de longa data, outro lutador pacífico da paz, Leonardo Boff.

Em 2002, quando o povo teve a coragem de eleger como seu presidente um operário com raízes no sertão do Nordeste, cunhou-se a expressão “a esperança venceu o medo”. Neste momento sombrio, não sei o que lamento mais: a ignorância de nossos juízes quanto às normas internacio­nais sobre tratamento de presos ou a pequenez de espírito dos que se apegam à formalidad­e das regras para tomar decisões despidas de qualquer sentido de humanidade.

Em meio a tantas arbitrarie­dades postas a serviço dos poderosos dentro e fora do Brasil, temos que buscar força e inspiração nas atitudes desassombr­adas de Boff e Esquivel. Necessitam­os eleições livres e justas, com a participaç­ão dos candidatos mais representa­tivos do povo, a começar por Lula, para que a paz e a confiança no futuro sejam devolvidas ao povo brasileiro. Não podemos permitir que o ódio e a mesquinhar­ia vençam a esperança.

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