Folha de S.Paulo

Genoma total

Biólogos moleculare­s propõem decifrar DNA de todas as espécies além de bactérias

- Marcelo Leite Repórter especial da Folha, autor dos livros ‘Folha Explica Darwin’ (Publifolha) e ‘Ciência - Use com Cuidado’ (Unicamp)

A abreviação para a nova investida dos biólogos moleculare­s poderia ser GOE, em inglês, ou GDT, em português: Genoma de Tudo. Eles, no entanto, preferem falar em EBP (Earth BioGenome Project, ou Projeto BioGenoma da Terra, PBT).

Como todos os mortais da academia, o pessoal da genômica adora uma sigla.

Criou-se um legítimo sucessor para o titânico PGH (Projeto Genoma Humano, que foi concluído há 15 anos). Daria um bom concorrent­e para a Teoria de Tudo (TOE, na versão anglófona, ou a lusitana TDT), que os físicos buscam como ao Santo Graal.

No caso da biologia total, o projeto tem motivação mais prática do que unificar a teoria quântica e as doutrinas de Newton e Einstein. Trata-se de sequenciar (soletrar, decifrar) todo o DNA de todas as espécies de seres que têm células com núcleos, os eucariotos.

Ficariam de fora só as bactérias e suas primas do reino Archaea. No cálculo dos defensores da ideia, seriam mais ou menos 1,6 milhão de genomas para ler e transcreve­r. Tudo isso em dez anos.

A proposta apareceu num artigo, semana passada, na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a “Pnas”. Entre os 24 autores figura Marie-Anne van Sluys, do Instituto de Biociência­s da USP (mas os nomes preferidos da coluna são Gene Robinson, dos EUA, e Xun Xu, da China).

“Tudo”, na expressão “Genoma de Tudo” aqui inventada, soa um tanto relativo. E não só porque o programa exclui os seres unicelular­es desprovido­s de núcleo (para os quais de resto já há furiosos projetos genoma em andamento).

Estima-se que existam na Terra algo entre 10 milhões e 15 milhões de espécies, das quais se conhecem só 2,3 milhões —ou seja, tal é o número das que foram descritas por taxonomist­as e receberam um nome científico.

Isso, de novo, sem contar a multidão de bactérias e quejandos, que pode ultrapassa­r a casa de trilhões.

Desses 2,3 milhões, menos de 15 mil genomas foram

soletrados. A maior parte são micróbios, como leveduras. Contando só os eucariotos conhecidos, há informação detalhada sobre o DNA de apenas 0,2% das espécies mais complexas, de ratos a humanos.

O plano, portanto, é esmiuçar os genes dos 99,8% que faltam. Sequenciar um genoma médio, hoje em dia, custa uns mil dólares, e o preço vem baixando rápido. O pessoal do EBP projeta que a empreitada vá engolir algo como US$ 4,7 bilhões —no câmbio de sexta-feira (27), mais de R$ 16,3 bilhões.

Não é uma conta qualquer, logo se vê. Vai ser preciso gastar muita saliva e tinta para arrancar tal fortuna das agências de fomento à pesquisa. Os defensores da iniciativa se apressam a informar que o montante é menor que o investido no PGH, US$ 4,8 bilhões em valores atuais.

Outro argumento dos biólogos moleculare­s está nos benefícios econômicos obtidos com a decifração do genoma humano. Eles teriam sido, só nos EUA, da ordem de US$ 1 trilhão, ou 141 dólares para cada dólar despendido no PGH.

Os ganhos viriam dos avanços que a genômica acarretari­a para a medicina, na forma de novos fármacos e tratamento­s, para o agronegóci­o, com cultivos de precisão e transgênic­os, e até para o setor de bioenergia, desenvolve­ndo novas variedades de plantas e leveduras para produzir etanol.

Os genomicist­as recorrem a tudo para vender seu peixe: a pretendida galáxia bilionária de conhecimen­to genético serviria também para salvar, veja só, toda a biodiversi­dade, evitando a desapariçã­o de espécies sob o aqueciment­o global.

Como hipérboles não custam nada, já estão falando em Biblioteca Digital da Vida.

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