O paradoxo da ‘Era da Imagem’
A manipulação digital afetou a credibilidade dos registros ao borrar a fronteira entre ficção e não ficção
Paradoxalmente, embora vivamos em uma “Era da Imagem”, com bilhões de fotos publicadas na internet a cada dia e trilhões disponíveis online, não estamos certos do que elas significam, se nos ajudam ou se é possível acreditar nelas.
Aquele selfie é um autorretrato ou uma forma de “branding” para melhorar, na internet, o status da pessoa retratada? Estamos diante da fotografia de um acontecimento ou de uma imagem fabricada de modo a simular uma fotografia?
O jornalismo, que depende de credibilidade, tem sido tanto enriquecido quanto ferido pela revolução digital. Embora contribuições de jornalistas cidadãos tenham sido enormes, e apesar de a fotografia sempre ter sido uma mídia subjetiva e interpretativa, a capacidade de alterar elementos visuais de forma imperceptível (com softwares como o Photoshop) reforçou o ceticismo do público quanto a imagens jornalísticas.
(E a produção generalizada de vídeos sintéticos de eventos que nunca aconteceram vai agravar este ceticismo de forma significativa.)
Os veículos de mídia têm feito pouco para explicar aos leitores o que é permissível de se modificar numa fotografia e esclarecer se ele está diante de um evento encenado para a câmera ou algo real e espontâneo.
Tampouco estabelecemos o vocabulário adequado para discutir o assunto —por exemplo, qual é a diferença entre fotografia de ficção e de não ficção? Em palavras, sabemos qual é a diferença: vá a qualquer livraria e haverá diferentes seções para cada uma delas. Mas, em fotografia, a maioria das pessoas teria dificuldade para definir as diferenças.
Quando Osama bin Laden foi morto por forças norte-americanas em 2011, nenhuma foto do evento foi divulgada. Barack Obama declarou: “É importante assegurar que fotos explícitas de alguém que levou um tiMeu Soldados na Guerra do Vietnã, em imagem feita por Philip J. Griffiths em 1968
ro na cabeça não circulem como incitação a mais violência —ou como ferramenta de propaganda”.
O então presidente acrescentou: “Não há dúvida entre os membros da Al Qaeda de que ele está morto. Por isso não acreditamos que uma foto vá fazer diferença. Haverá quem negue o ocorrido, mas o fato é que ninguém mais verá Osama bin Laden caminhando por este mundo”.
Porém, se já não acreditamos que “uma foto vá fazer diferença”, então por que tirar fotos?
Esse ceticismo quanto à utilidade da fotografia como referência social também ajuda a explicar por que, nos últimos anos, surgiram tão pou-
fotos emblemáticas, que colocassem foco em questões relevantes como mudança climática e imigração —exceto pelo retrato de Alan Kurdi, o refugiado sírio de três anos afogado em 2015. Hoje, inclusive, pouco se fala de fotos icônicas e muito de imagens virais, que simplesmente se espalham como uma epidemia.
Parte do problema está em nós e em nossas expectativas. Certa vez, Paul Stookey, da banda Peter, Paul and Mary, fez uma reflexão no palco: após o fim da revista Life (vida), a próxima publicação popular dos EUA foi a People (pessoas), que foi, então, seguida pelo periódico Us (nós), que por sua vez levou à revista Self (si mesmo), que tirou do foco qualquer outra pessoa ou coisa.
Usando o ego como trampolim, a sociedade de consumo privilegia o desejo por bens materiais como um direito primordial do indivíduo, que desloca, inclusive, suas obrigações de cidadania. Por sua vez, as próprias posses se tornaram secundárias à marca que as define, de modo que o que é comprado é um simulacro.
Assim é com as selfies, que pouco têm a ver com autorretrato ou autoconhecimento, mas parecem essenciais para fabricar uma imagem que se torna moeda para comprar status online. Da mesma forma, somos levados a olhar para paisagens idílicas em vez da destruição ambiental que indica nossos desafios urgentes de sobrevivência.
Essa mudança põe em questão o funcionamento do jornalismo, mas também de instituições democráticas que precisam que cidadãos sejam informados de maneira confiável.
Curiosamente, a resposta de muitos dos fotógrafos documentais mais reflexivos e preocupados com o bemestar social é retirar o caráter de reportagem como sustentáculo da credibilidade de sua abordagem. Em vez disso, eles tendem a trabalhar de forma mais conceitual, explorando os sistemas subjacentes em jogo, e não apenas seus sintomas. Um dos primeiros exemplos disso é o livro “Vietnam Inc.” (1971), de Philip Jones Griffiths, no qual a guerra é retratada como algo comparável a uma operação de mercado.
Essas estratégias permitem uma abordagem proativa, que tenta encontrar maneiras de minimizar ou até prevenir desastres, ao invés de esperar que ocorram para fotografar o espetáculo que pode se seguir.
Isso se torna um traço de um emergente renascimento fotográfico, similar ao que ocorreu com a pintura no século 19, quando a invenção da fotografia libertou os pintores da concentração em representação direta e os encorajou a transformar sua abordagem —resultando no impressionismo, cubismo, surrealismo etc.
Em uma verdadeira revolução midiática, não podemos, como arguiu o canadense Marshall McLuhan no século passado, contentar-nos em viajar a 150 km/h olhando no retrovisor. Porque, se o fizermos, nós provavelmente
 teremos um acidente.