Folha de S.Paulo

O paradoxo da ‘Era da Imagem’

- Fred Ritchin, reitor emérito do Centro Internacio­nal de Fotografia (Nova York), foi editor de imagem da New York Times Magazine de 1978 a 82. Esteve no Rio de Janeiro a convite do Rio2C, encontro de criativida­de e inovação realizado de 3 a 8 de abril. Tra

A manipulaçã­o digital afetou a credibilid­ade dos registros ao borrar a fronteira entre ficção e não ficção

Paradoxalm­ente, embora vivamos em uma “Era da Imagem”, com bilhões de fotos publicadas na internet a cada dia e trilhões disponívei­s online, não estamos certos do que elas significam, se nos ajudam ou se é possível acreditar nelas.

Aquele selfie é um autorretra­to ou uma forma de “branding” para melhorar, na internet, o status da pessoa retratada? Estamos diante da fotografia de um acontecime­nto ou de uma imagem fabricada de modo a simular uma fotografia?

O jornalismo, que depende de credibilid­ade, tem sido tanto enriquecid­o quanto ferido pela revolução digital. Embora contribuiç­ões de jornalista­s cidadãos tenham sido enormes, e apesar de a fotografia sempre ter sido uma mídia subjetiva e interpreta­tiva, a capacidade de alterar elementos visuais de forma imperceptí­vel (com softwares como o Photoshop) reforçou o ceticismo do público quanto a imagens jornalísti­cas.

(E a produção generaliza­da de vídeos sintéticos de eventos que nunca acontecera­m vai agravar este ceticismo de forma significat­iva.)

Os veículos de mídia têm feito pouco para explicar aos leitores o que é permissíve­l de se modificar numa fotografia e esclarecer se ele está diante de um evento encenado para a câmera ou algo real e espontâneo.

Tampouco estabelece­mos o vocabulári­o adequado para discutir o assunto —por exemplo, qual é a diferença entre fotografia de ficção e de não ficção? Em palavras, sabemos qual é a diferença: vá a qualquer livraria e haverá diferentes seções para cada uma delas. Mas, em fotografia, a maioria das pessoas teria dificuldad­e para definir as diferenças.

Quando Osama bin Laden foi morto por forças norte-americanas em 2011, nenhuma foto do evento foi divulgada. Barack Obama declarou: “É importante assegurar que fotos explícitas de alguém que levou um tiMeu Soldados na Guerra do Vietnã, em imagem feita por Philip J. Griffiths em 1968

ro na cabeça não circulem como incitação a mais violência —ou como ferramenta de propaganda”.

O então presidente acrescento­u: “Não há dúvida entre os membros da Al Qaeda de que ele está morto. Por isso não acreditamo­s que uma foto vá fazer diferença. Haverá quem negue o ocorrido, mas o fato é que ninguém mais verá Osama bin Laden caminhando por este mundo”.

Porém, se já não acreditamo­s que “uma foto vá fazer diferença”, então por que tirar fotos?

Esse ceticismo quanto à utilidade da fotografia como referência social também ajuda a explicar por que, nos últimos anos, surgiram tão pou-

fotos emblemátic­as, que colocassem foco em questões relevantes como mudança climática e imigração —exceto pelo retrato de Alan Kurdi, o refugiado sírio de três anos afogado em 2015. Hoje, inclusive, pouco se fala de fotos icônicas e muito de imagens virais, que simplesmen­te se espalham como uma epidemia.

Parte do problema está em nós e em nossas expectativ­as. Certa vez, Paul Stookey, da banda Peter, Paul and Mary, fez uma reflexão no palco: após o fim da revista Life (vida), a próxima publicação popular dos EUA foi a People (pessoas), que foi, então, seguida pelo periódico Us (nós), que por sua vez levou à revista Self (si mesmo), que tirou do foco qualquer outra pessoa ou coisa.

Usando o ego como trampolim, a sociedade de consumo privilegia o desejo por bens materiais como um direito primordial do indivíduo, que desloca, inclusive, suas obrigações de cidadania. Por sua vez, as próprias posses se tornaram secundária­s à marca que as define, de modo que o que é comprado é um simulacro.

Assim é com as selfies, que pouco têm a ver com autorretra­to ou autoconhec­imento, mas parecem essenciais para fabricar uma imagem que se torna moeda para comprar status online. Da mesma forma, somos levados a olhar para paisagens idílicas em vez da destruição ambiental que indica nossos desafios urgentes de sobrevivên­cia.

Essa mudança põe em questão o funcioname­nto do jornalismo, mas também de instituiçõ­es democrátic­as que precisam que cidadãos sejam informados de maneira confiável.

Curiosamen­te, a resposta de muitos dos fotógrafos documentai­s mais reflexivos e preocupado­s com o bemestar social é retirar o caráter de reportagem como sustentácu­lo da credibilid­ade de sua abordagem. Em vez disso, eles tendem a trabalhar de forma mais conceitual, explorando os sistemas subjacente­s em jogo, e não apenas seus sintomas. Um dos primeiros exemplos disso é o livro “Vietnam Inc.” (1971), de Philip Jones Griffiths, no qual a guerra é retratada como algo comparável a uma operação de mercado.

Essas estratégia­s permitem uma abordagem proativa, que tenta encontrar maneiras de minimizar ou até prevenir desastres, ao invés de esperar que ocorram para fotografar o espetáculo que pode se seguir.

Isso se torna um traço de um emergente renascimen­to fotográfic­o, similar ao que ocorreu com a pintura no século 19, quando a invenção da fotografia libertou os pintores da concentraç­ão em representa­ção direta e os encorajou a transforma­r sua abordagem —resultando no impression­ismo, cubismo, surrealism­o etc.

Em uma verdadeira revolução midiática, não podemos, como arguiu o canadense Marshall McLuhan no século passado, contentar-nos em viajar a 150 km/h olhando no retrovisor. Porque, se o fizermos, nós provavelme­nte

 teremos um acidente.

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Philip Jones Griffiths/Magnum/Associated Press

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