Folha de S.Paulo

Inspiração que faz voar alto

- “The Spirit” Mauricio de Sousa, 82, desenhista consagrado, é criador dos quadrinhos da Turma da Mônica.

‘Sinto Will Eisner como outro pai, que espargiu mensagens carinhosas emoldurada­s em desenhos’

primeiro contato com quadrinhos foi aos 4 ou 5 anos de idade, quando encontrei um resto de gibi jogado em um cesto de lixo na rua.

Levei para casa e pedi a meus pais que lessem para mim aquelas historinha­s com aventuras de heróis. O interesse foi tanto que eles começaram a me trazer mais quadrinhos, até que pedi para minha mãe me ensinar a ler, porque não queria mais depender dos horários em que eles podiam fazer isso por mim.

Em três meses, aprendi a ler o básico e nunca mais parei.

Mas minha verdadeira entrada na linguagem dos quadrinhos, que me serve de inspiração até hoje, foi quando descobri as histórias do Spirit, de Will Eisner.

Eu tinha dez anos quando vi aquele personagem na revista Gibi. Ele era diferente dos outros heróis da época: era humano, tinha fragilidad­es, apanhava um bocado dos bandidões grandalhõe­s e, às vezes, se sentia atraído por voluptuosa­s vilãs.

Eram os anos 40 e eu ficava elétrico de inspiração com a dinâmica que Eisner dava àquelas histórias, cheias de sentimento, com um herói sem superpoder­es nas ruas da periferia de Nova York, desenhadas com ângulos diferencia­dos e não usuais nos outros quadrinhos.

Claro que, mais tarde, meus próprios desenhos seriam bem mais simples, até porque eram voltados para um público infantil. Mas foi aquilo que me fez sentir que a linguagem dos quadrinhos é uma revolução de ideias, muito bem colocada entre a literatura e as artes gráficas.

Nunca nenhum autor teve coragem de tratar seu herói com tanto respeito por sua humanidade quanto Eisner fez com Spirit.

Não por acaso, Eisner foi inspiração até para planos em branco e preto de filmes de Orson Welles. A cidade era vista na perspectiv­a de um drone, se isso existisse nos anos 40. A ideia de criar sempre algo nocas vo vinha desde os títulos das histórias, onde o nome “The Spirit” era escrito sempre de forma diferente.

Eisner tinha facilidade especial em manter um ritmo que trazia o leitor para dentro da história, fazendo com que comprasse a ideia de que aquilo realmente estava acontecend­o.

Lembro uma história em particular, chamada “A História de Gerhard Shnobble”. Nela, o personagem do título descobre que sabe voar aos oito Capa de coletânea brasileira anos de idade, mas, por repressão de seus pais, é obrigado a esconder essa condição e, por isso, vive tristonho e resignado.

Passa o tempo, ele cresce e vai trabalhar como vigia noturno de um banco. A agência é assaltada, e ele, despedido. Sem ânimo de viver, ele lembra que pode voar, sobe até o topo de um edifício e voa. Mas aqueles mesmos bandidos (que fogem e são caçados pelo Spirit) começam a atirar. Gerhard morre em pleno voo, por uma bala perdida, e cai ao chão.

Ao final, Eisner dá uma lição de vida pelo texto do narrador:

“Mas não chore por Shnobble. Antes, derrame uma lágrima por toda a humanidade. Pois ninguém, em toda a multidão que viu o corpo ser removido, soube, ou sequer suspeitou, que nesse dia Gerhard Shnobble tinha voado”.

A dimensão desse conto de apenas sete páginas demonstra o quanto uma HQ pode fazer transborda­rem sentimento­s e, embalados por aqueles traços cheios de vida, fazer com que pensemos no que deixamos de lado em nossas vidas.

Sinto Eisner como um outro pai. Um pai amoroso, que espargiu mensagens lindas e carinhosas emoldurada­s em desenhos maravilhos­os que captei desde criança —eu e milhares de leitores espalhados pelo mundo.

Fui contemplad­o com o prazer de conhecê-lo pessoalmen­te —e até alimentar uma amizade— durante suas vindas ao Brasil e minhas idas a sua casa em Miami. E pelo modo como me tratava, acho que ele desconfiav­a que eu era mais um filho dele.

Aliás, ao escrever sobre meu mestre Will Eisner, me reportei para aqueles tempos em que minha esperança na vida era realizar sonhos e voar. Mesmo que ninguém visse ou desse qualquer importânci­a para isso, lendo suas historinha­s do Spirit,

 eu consegui voar.

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Divulgação/Senac Will Eisner desenha personagen­s de Mauricio de Sousa, em visita a SP em 1979
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