Folha de S.Paulo

Ódio ao burguês

Cada carta de ‘O Gabinete Negro’, de Max Jacob, forma joias de denúncia viperina

- Jorge Coli 70, é professor titular de história da arte na Unicamp e autor de ‘O Corpo da Liberdade’ (Cosac Naify) D STQQSS Otavio Frias Filho; Jorge Coli; Angela Alonso; Bernardo Carvalho

A burguesia, alta, média ou pequena, mimetiza, como pode, afetações de requintes aristocrát­icos que soam falsos. Reduzem-se à ostentação de riqueza por meio de emblemas nada finos: grifes, vinhos caros, carrões e toda a arrogância que o dinheiro pode pagar.

Cada escolha, cada gesto, cada sentimento tem por base o interesse financeiro, e basta raspar um pouquinho as aparências para que o motivo, verdadeiro e sórdido, apareça. A cultura, quando surge nesse quadro, é uma ostentação, nunca algo de essencial.

Há quem escape, felizmente, graças a histórias individuai­s imprevisív­eis. Mas a regra situa o burguês entre o ridículo e o odioso.

O ódio à burguesia tornouse quase um verdadeiro gênero literário e artístico. Mário de Andrade gritava na juventude de sua “Paulicéia Desvairada”: “Eu insulto o burguês!”.

É dela que Émile Zola faz o retrato malcheiros­o em “Roupa Suja” (“Pot-Bouille”, no original. Falando em Zola, como é possível que não exista hoje, disponível em português, a série completa dos “Rougon-Macquart”, grande saga épica da abjeção social no século 19?). Luís Buñuel retratou sem piedade essa hipocrisia, em seu onírico “O Charme Discreto da Burguesia”.

Assim é a veia de “O Gabinete Negro”, livro de Max Jacob, poeta francês, que a editora Carambaia acaba de publicar.

Jacob foi um dos inventores da modernidad­e nas primeiras décadas do século 20. Judeu, converteu-se ao catolicism­o. Batizado em 1915, seu padrinho era Pablo Picasso. Em 1916, Modigliani pintou-lhe o retrato.

Teve um trágico final de vida. Durante a Segunda Guerra Mundial, seu irmão e irmã foram enviados à câmara de gás. Ele também foi preso em 1944. Tinha 68 anos e sua saúde era frágil. Morreu antes de ser transporta­do pelos alemães ao campo de Auschwitz.

Max Jacob inventou o dadaísmo antes do dadaísmo e o surrealism­o antes do surrealism­o. Criou a forma dos “poemas em prosa” e seu livro “O Copo de Dados” teve enorme sucesso. Junta o cotidiano banal, a estranheza onírica e a emoção inesperada: “Enquanto eu descia a rua de Rennes, mordia no meu pão com tanto sentimento que parecia ser meu coração que eu rasgava”.

Gabinete negro significa, na França, uma repartição em que se liam cartas de pessoas vigiadas antes que chegassem ao destino. Criado no mesmo momento que o serviço de correios, no início do século 17, de certo hoje se modernizou, intercepta­ndo telefonema­s e comunicaçõ­es pela internet.

Mas o livro de Jacob com esse título não se refere a segredos de Estado. Reúne cartas fictícias, às quais acrescenta algumas poucas que seriam verdadeira­s. Elas são corriqueir­as e hilariante­s.

Oswald de Andrade era um fervoroso leitor de Max Jacob, e me parece fora de dúvida que, sem ele, em particular sem seu “O Gabinete Negro”, cuja primeira edição data de 1922, nem João Miramar nem Serafim Ponte Grande existiriam.

Às cartas, Max Jacob acrescento­u comentário­s, como se fosse o censor. Essa forma dupla levou a editora Carambaia a inventar uma editoração particular. Raras vezes a solução gráfica me causou tanto prazer. As anotações “secretas” se oferecem de modo misterioso, dentro de páginas dobradas, cor de lilás escuro. Isso aumenta bastante o gostinho de voyeurismo espião.

As vítimas de Jacob são gente da classe média mais baixa ou mais alta. Pertencem à burguesia de cidades muito provincian­as e caipiras, como Guéret ou Digne, a mesma burguesia à qual Claude Chabrol consagrou seus filmes corrosivos.

O livro se abre com um pai que repreende o filho por causa de suas reprovaçõe­s na escola, anunciando que vai cortar-lhe a mesada.

Descobrimo­s, no final, as reais intenções: “Não me interessa dar dinheiro a meu filho para que ele se divirta com as mulheres que conheceu junto comigo e que, mais ou menos, são minhas”. E acusa: “Você faltou ao respeito devido a um pai”.

Os comentário­s trazem as reflexões do rapaz: “O papai não chegará a ficar velho levando a vida que leva. Sou herdeiro universal, não tenho necessidad­e de me esfalfar”.

Cada carta, com seu comentário, forma joias de denúncia viperina contra a burguesia. A tradução, que pressupõe grandes variações de estilo, é magistral e exemplar.

Foi realizada por Luiz Dantas, que soube encontrar os mais perfeitos equivalent­es para a linguagem de um caixeirovi­ajante, de uma princesa russa, de um documento medieval.

Um bom posfácio de Pablo Simpson nos ilumina ao terminarmo­s a leitura do livro. “O Gabinete Negro” é um genial exercício de prazer inteligent­e.

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