Folha de S.Paulo

A Polícia Federal por ela mesma

- Por Rubens Valente Rubens Valente, 48, é repórter da Folha em Brasília e autor de “Operação Banqueiro” (Geração Editorial).

Livros recentes, escritos por policiais federais, indicam uma nova tendência de membros da PF de expor a um público mais amplo suas reflexões sobre as estratégia­s e os rumos da corporação. A prática coincide com o aumento do interesse por corrupção e segurança pública no Brasil

últimos anos, a Polícia Federal (PF) tornou-se umas das maiores usinas geradoras de notícias do país. Sua presença é constante nas manchetes de jornais e telejornai­s, nas conversas de bar e nas redes sociais. Todos os dias há algo a ser dito pelos brasileiro­s sobre o que a instituiçã­o fez ou deixou de fazer: alguém que prendeu, alguém que deveria prender ou alguém que foi obrigada a soltar.

Nem sempre foi assim. Criada em março de 1944, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas e com o nome de Departamen­to Federal de Segurança Pública, a PF nasceu como um órgão pequeno voltado para a segurança de fronteiras e assuntos de “ordem política e social”, eufemismo para repressão a comunistas e outros adversário­s do governo.

Nas décadas seguintes, a instituiçã­o ganhou corpo e novas funções. Mudou o nome para o atual Departamen­to de Polícia Federal em 1967, durante a ditadura militar; com a Constituiç­ão de 1988, passou a ser estruturad­a em carreira. Mas foi só em anos recentes que começou a influencia­r os rumos da República, investigan­do e derrubando políticos e pondo em xeque a Presidênci­a.

Uma mudança importante ocorreu em 2003, quando Paulo Lacerda exercia a direção-geral do órgão e Márcio Thomaz Bastos (1935-2014) era ministro da Justiça. A partir daquele ano, as grandes operações viraram rotina. Deflagrada­s simultanea­mente em vários pontos do país e envolvendo dezenas ou centenas de policiais, as ações adquiriram inegável apelo midiático.

Embora muito se fale sobre a PF fora de sua sede —apelidada de “máscara negra”, devido a seus vidros escuros—, a própria instituiçã­o não tem o costume de vir a público para discutir métodos, avaliar o passado e dar indicações sobre o futuro.

Não que não existam reflexões. É que, na maioria das vezes, elas ficam intramuros ou não chegam a um público mais amplo. A PF edita desde 2010, por meio da Academia Nacional de Polícia e da Escola Superior de Polícia, a Revista Brasileira de Ciências Policiais, com objetivo acadêmico. De circulação semestral, atingiu 16 edições, todas disponívei­s na internet.

Coincidind­o com o aumento exponencia­l do interesse dos brasileiro­s pelos temas da corrupção e segurança pública, membros da PF também começam a falar para um público mais amplo.

Seguem os passos da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal e da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, que desde os anos 90 editam revistas que misturam informativ­os classistas e artigos sobre as investigaç­ões propriamen­te ditas (as edições da revista Perícia Federal estão na internet).

Só no ano passado, a Fenapef (federação dos agentes da PF) disse ter ajudado no lançamento de seis livros escritos por policiais federais. Outros sete estão programado­s para 2018.

Um exemplo é “Ciências Policiais e Segurança Pública” (Ilumina, 303 págs.), organizado por Anderson Pablo Pereira Fernandes, escrivão da PF de Goiânia (GO), e por Édson Luís Baldan, delegado e professor de direito penal na PUC de São Paulo.

A obra, que ainda será lançada, compila 20 artigos escritos por policiais federais, com tom predomipre nantemente conceitual e jurídico. Algumas linhas de reflexão mais instigante­s, como a que caracteriz­a o inquérito de “fomentador da impunidade”, são exceções. Mas o conjunto revela esforço positivo de apresentar o papel da polícia no sistema judicial pelo olhar dos próprios policiais.

Outro exemplo é “Operações Especiais de Polícia Judiciária” (Novo Século, R$ 37, 255 págs.), escrito pelo delegado Élzio Vicente da Silva, considerad­o um dos principais quadros em atividade na PF.

Na gestão de Lacerda (2003-2007), Élzio coordenou uma divisão da Diretoria de Inteligênc­ia Policial, centro nervoso das grandes operações deflagrada­s no período.

Com o órgão sob comando de Leandro Daiello (2011-2017), assumiu a estratégic­a superinten­dência da PF no Distrito Federal, onde tramitam investigaç­ões sobre políticos sem foro especial no Supremo Tribunal Federal, além das operações Acrônimo, que atingiu o governador Fernando Pimentel (PT-MG), e a Zelotes, que colocou em maus lençóis grandes empresas e bancos.

Por decisão do novo diretor-geral, Rogério Galloro, Élzio é o chefe da poderosa Diretoria de Investigaç­ão e Combate ao Crime Organizado, na qual circulam, do ponto de vista logístico e operaciona­l, todas as grandes ações da PF. Vinculado a ela está o grupo de delegados que atua em inquéritos no STF.

Essa trajetória explica por que o livro atraiu o interesse de quem acompanha a área da segurança pública. Tomando por foco o combate ao terrorismo, o delegado fala do papel que deve caber à polícia num país democrátic­o: para ele, é semNos a polícia, e não as Forças Armadas, a mais capacitada para enfrentar grupos criminosos.

Para reforçar o argumento, aponta “a ineficácia dos métodos tradiciona­is de combate” das Forças Armadas dos EUA contra células terrorista­s no Iraque e no Afeganistã­o.

“Esse mesmo aparato bélico é incapaz de neutraliza­r as ameaças quando direcionad­as à população civil, como nos atentados realizados na França, Bélgica, Turquia e Alemanha (2015 e 2016) e [em] Londres e Estocolmo (2017), razão pela qual ganha força a atividade de investigaç­ão de grupos, [com] ações preventiva­s e repressiva­s oportunas e agressivas, inerentes à ação policial.”

Tendo escrito o livro antes da intervençã­o federal no Rio de Janeiro, Élzio deplora o uso do termo “guerra” para descrever o enfrentame­nto de grupos criminosos. “A verdade é exatamente o oposto: cada vez mais as Forças Armadas se afastam do modelo tradiciona­l e tentam se aproximar, com suas atividades denominada­s de ações de garantia da lei e da ordem (GLO) —que são, em essência, atividades inerentes às forças de segurança—, da forma de atuar das unidades policiais, na atividade da persecução criminal.”

Ele continua: “Quando se trata de ambiente de guerra, em que praticamen­te os fins justificam os meios, basta ao líder estabelece­r regras claras de engajament­o e propor que seja feita a coisa certa. [...] De outro lado, a polícia atua não perante um inimigo, mas investigan­do fatos com participaç­ão de pessoas. Nessa apuração, precisa seguir determinad­os ritos, voltados à observânci­a e à preservaçã­o dos direitos e garantias dos investigad­os —e em alguns casos por meio de prévias e imprescind­íveis análises pelo Poder Judiciário—, de forma a atestar a lisura e a transparên­cia da investigaç­ão.”

Para o autor, a PF vem diversific­ando seus métodos investigat­ivos. Élzio divide os últimos 15 anos da PF em três fases: a geração 1, marcada pela análise, iniciada em 2003 com a prevalênci­a das grandes operações; a geração 2, da “exploração + análise”, marcada por “ondas de operações” e uma “ação de desestabil­ização da estrutura criminosa”, da qual a Operação Lava Jato foi o grande exemplo; e a atual geração 3, de “ação + exploração imediata”.

O próprio Élzio ajudou a construir o modelo dessa terceira fase. O método foi primeiro aplicado em julho de 2016, na Operação Hashtag, que teve por alvo um grupo de brasileiro­s que pregava a radicaliza­ção e a violência às vésperas da Olimpíada no Rio de Janeiro.

A ideia é que, ao cumprirem mandados de busca e apreensão, os policiais não arrecadem tudo o que estiver pela frente. Eles devem fazer uma triagem no próprio local e, se possível, discutir algumas evidências com os investigad­os —por exemplo, a origem de documentos e arquivos digitais. Isso deverá estimular um envolvimen­to maior dos agentes e delegados e reduzir a chance de apreensão de dados inúteis para a investigaç­ão. A nova proposta quer deixar essa etapa menos burocrátic­a e automática, tornando-a parte efetiva da apuração.

Além disso, com o apoio de peritos, devem copiar no mesmo dia o conteúdo de pen drives, discos rígidos, telefones celulares etc. Em curto espaço de tempo, poderão devolver os aparelhos aos seus respectivo­s donos (hoje há casos de itens há mais de um ano em poder da polícia).

A expectativ­a é que essas medidas ofereçam um foco investigat­ivo menos disperso e ajudem a diluir o que talvez seja o grande problema enfrentado pela corporação: o gargalo tecnológic­o da investigaç­ão, isto é, a análise dos milhares de terabytes obtidos nas diversas operações. Há tantos dados que a PF tem dificuldad­e para interpretá-los.

No livro, o delegado ainda aborda outra questão importante. Em um país cada vez mais violento e com seguidas ações de facções criminosas em diversos estados, é natural que a PF passe a ser cobrada também em relação a esse campo —embora a responsabi­lidade legal por essa área da segurança pública seja da Polícia Civil e da Polícia Militar.

Sobre esse ponto, Élzio faz um diagnóstic­o frio e que projeta as grandes dificuldad­es que o país terá pela frente: “Enfrentar a criminalid­ade organizada, mas dispersa, volátil, desregulad­a, ao mesmo tempo ágil e eficiente nos resultados, travestida de atuações individuai­s, com planejamen­to efêmero e flexível, exige sensibilid­ade e, acima de tudo, capacidade de adaptação. Para enfrentá-la, ainda não há resposta pronta, um modelo a ser seguido. O que o Estado-Polícia pode oferecer como ferramenta já existente é sua resiliênci­a e adaptabili­dade, sua capacidade de ação diante das oportunida­des”.

Dias depois de Élzio assumir a dianteira da divisão contra o crime organizado, a PF anunciou ter incluído o combate às facções criminosas entre os objetivos de uma unidade já existente. A tarefa está agora em área subordinad­a à diretoria do próprio Élzio. Em uma coincidênc­ia curiosa entre teoria e prática, o delegado terá a oportunida­de de testar na vida real algumas passagens de seu livro —só não se sabe com que

 taxa de sucesso.

Embora muito se fale sobre a PF fora de sua sede, a própria instituiçã­o não costuma vir a público para discutir métodos e indicar seu futuro

Para o delegado Élzio Vicente, é sempre a polícia, e não as Forças Armadas, a mais capacitada para enfrentar grupos criminosos

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