Folha de S.Paulo

Magnetismo contra o câncer

- Por Flávio Garcia Flávio Garcia 47, é doutor em física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, onde é pesquisado­r. Trabalha com propriedad­es magnéticas da matéria.

Uma linha de pesquisa na luta contra o câncer avança em vários países, incluindo o Brasil. Trata-se da hipertermi­a magnética, que usa nanopartíc­ulas para matar células cancerosas por meio de calor controlado, reduzindo ao máximo efeitos colaterais para o paciente

A luta contra o câncer não se dá apenas em hospitais e no campo da medicina. Inúmeros cientistas ao redor do mundo, de áreas diversas, também procuram desenvolve­r novos tratamento­s. São pesquisas sobre possíveis terapias para, em termos simples, matar o câncer sem causar efeitos colaterais graves.

Tratamento­s convencion­ais costumam agir no organismo como um todo. Um quimioterá­pico, por exemplo, também ataca células sadias. Sua dose deve ser cuidadosam­ente avaliada: se pequena, corre-se o risco de não ser eficaz; se grande, pode compromete­r a vida do paciente.

O medicament­o ideal é aquele que vai direto ao alvo, atuando só ali e eliminando de forma definitiva o câncer. Esse super-remédio tem sido a busca incessante de vários cientistas.

Uma das linhas de pesquisa envolve a criação de dispositiv­os capazes de carregar um medicament­o para o interior da célula tumoral e liberá-lo lá dentro, de forma controlada. Estratégia semelhante poderia servir para diagnostic­ar o tipo de câncer e identifica­r as áreas do corpo nas quais ele se instalou.

Não é simples desenvolve­r um dispositiv­o que sirva, ao mesmo tempo, a várias funções (medicament­o, diagnóstic­o etc.). Um modo de implementa­r isso é por meio do uso das nanopartíc­ulas, cujas dimensões estão na casa dos bilionésim­os de metro (um fio de cabelo tem diâmetro cerca de 50 mil vezes maior).

Essas partículas devem ter basicament­e duas propriedad­es: 1) a de serem venenosas para as células cancerosas, mas só para elas; 2) a de serem atrativas (somente) para as células doentes. Para cumprir esta última tarefa, elas podem ser recobertas com algo de que a célula doente precise para viver.

Outra possibilid­ade é utilizar nanopartíc­ulas magnéticas, as quais podem ser facilmente guiadas até o tumor por meio de ímãs. Essa técnica tem a vantagem adicional de facilitar o recobrimen­to das partículas com algo que as tornem um tipo de cavalo de Troia para as células cancerosas.

Uma vez atingido o destino (interior da célula), entra em cena a arma principal: um campo eletromagn­ético intenso (ondas de rádio, na verdade) aplicado sobre o paciente (e inofensivo para ele) faz com que as nanopartíc­ulas esquentem muito, causando, por consequênc­ia, a morte da célula por excesso de calor.

A tática explora uma diferença crucial entre as células cancerosas e as sadias: as primeiras suportam calor da ordem de 40º Celsius; as últimas, até mais ou menos 45º Celsius. Portanto, controland­o a intensidad­e do campo eletromagn­ético, é possível fazer com que a região afetada pelo tumor atinja uma temperatur­a intermediá­ria (42º Celsius, digamos), a fim de destruir só o tecido tumoral.

Esse é basicament­e o conceito da hipertermi­a magnética, campo que deu os primeiros passos (ainda tímidos) na década de 1950 por cirurgiões e engenheiro­s eletrônico­s. O objetivo era destruir o câncer que havia se espalhado pelo corpo de pacientes.

Desde então, a área, associada ao desenvolvi­mento da nanotecnol­ogia, vem ganhando projeção. Exemplo disso é o trabalho contemplad­o com o Nobel de Química de 2016. Os três ganhadores —Jean-Pierre Sauvage, Fraser Stoddart e Bernard Feringa— desenvolve­ram o conceito de máquinas moleculare­s, que podem ter uma função quando estimulada­s. Por exemplo, agir como espécie de carteiro, entregando a encomenda (medicament­o) em um endereço específico (tecido tumoral).

Com o que sabemos, podemos traçar uma estratégia para desenvolve­r um dispositiv­o multifunci­onal para a terapia contra o câncer. Ele seria formado por nanopartíc­ulas magnéticas, que estariam recobertas por um ou mais tipos de molécula que as tornassem atrativas para células tumorais e desinteres­santes para as sadias. Esse conjunto ainda poderia servir como elemento de contraste para diagnóstic­os e também armazenar um remédio antitumora­l.

O próximo passo seria injetar uma dose dessas nanopartíc­ulas na corrente sanguínea do paciente e, com o auxílio de ímãs, guiá-las até o tumor, cujas células as deixarão entrar (tecnicamen­te, serão internaliz­adas) em profusão, gerando consideráv­el concentraç­ão do dispositiv­o dentro das células doentes.

Inicialmen­te, poderíamos fazer imagens com ressonânci­a magnética. Isso permitiria uma análise mais detalhada do tumor. Depois, duas frentes de combate se abririam.

A primeira envolve a aplicação de ondas de rádio na região tumoral, provocando o aqueciment­o das nanopartíc­ulas magnéticas e a morte, de dentro para fora, das células malignas. A segunda consiste no uso dos dispositiv­os para liberar, no interior das células, o remédio armazenado neles, em dose milimetric­amente ajustada para matar o câncer.

Nos dois casos, as células morreriam devido ao “presente de grego”.

É importante observar que os dispositiv­os não podem se atrair mutuamente, como fazem os ímãs. Isso poderia causar coágulos ou entupiment­os de veias.

Entre os materiais magnéticos mais empregados para essas finalidade­s estão os spions (lê-se “spáions”), sigla em inglês para nanopartíc­ulas superparam­agnéticas de óxido de ferro. Nome complicado para algo simples: nanoesfera­s de óxido de ferro, com cerca de dez bilionésim­os de metro (dez nanômetros) de diâmetro.

Há boas razões para o uso dos spions. Eles não só são seguros para o organismo —há muito óxido de ferro em nosso corpo— mas também se combinam facilmente com outras substância­s (revestimen­tos, medicament­os, contrastes etc.).

Além disso, quando não estão na presença de um campo magnético, eles se comportam como um material qualquer (caracterís­tica descrita pelo termo mais complexo de sua definição, o superparam­agnetismo). Ou seja, os spions não se atraem mutuamente.

Tudo isso pode soar como futurologi­a típica de um novo campo de pesquisa, mas parte do que foi dito aqui já deixou as bancadas dos laboratóri­os e chegou à aplicação clínica

Tudo isso pode soar como futurologi­a típica de um novo campo de pesquisa —que é o caso da aplicação de magnetismo ao câncer—, na tentativa de parecer promissor. Contudo, parte do que foi dito aqui já deixou as bancadas dos laboratóri­os e chegou à aplicação clínica.

Na Alemanha, por exemplo, há uma empresa que usa a hipertermi­a magnética como terapia contra o câncer. A técnica pode ser combinada a outras, como a radioterap­ia.

No entanto, os spions, embora interessan­tes, não são ideais. Um de seus problemas é não serem capazes de absorver a energia do campo eletromagn­ético e liberá-la na forma de calor —essa capacidade é chamada histerese magnética.

O único efeito do campo sobre essas nanopartíc­ulas é torná-las agitadas. Com isso, elas geram calor por atrito, do mesmo modo que esquentamo­s as mãos esfregando uma contra a outra. Ocorre que esse calor fruto do atrito não é tão intenso quanto aquele gerado pela histerese.

Por isso, a busca por novos materiais que gerem mais calor continua.

Apesar das dificuldad­es pelas quais a ciência no Brasil tem passado — afinal, muitos acham que ciência básica é gasto desnecessá­rio—, nosso país não está alheio a essas pesquisas. Por exemplo, nosso grupo no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, investiga partículas de óxido de ferro cuja estrutura —cerca de dez vezes maior que a dos spions— é a de um anel.

Esses anéis, assim como qualquer material magnético, são formados por diminutos ímãs que se organizam em forma de redemoinho­s (no jargão da física, vórtices magnéticos). Por isso, nós batizamos essas partículas de VIPs (em inglês, partículas de óxido de ferro com vórtices).

O tamanho e a forma peculiares conferem pelo menos duas vantagens às VIPs, quando comparadas aos spions: 1) aquecem cerca de dez vezes mais sob a influência de um campo eletromagn­ético, por causa dos vórtices; 2) são mais “saborosas” para as células cancerosas do que outras nanopartíc­ulas.

O segundo item fica comprovado por imagens feitas com microscópi­os superpoten­tes, as quais mostram que as células tumorais engolem as VIPs com voracidade. E, assim como os spions, guardam propriedad­es indispensá­veis para aplicações biomédicas: não são tóxicas para as células sadias e, na ausência de um campo magnético, comportam-se como um material ordinário —ou seja, não se aglomeram, o que poderia levar ao entupiment­o de vasos sanguíneos.

As VIPs foram tema de uma tese de doutorado recente, cujos resultados foram publicados na prestigios­a revista Scientific Reports, do grupo Nature.

Qual a chance de as VIPs serem usadas para tratar o câncer em humanos? Permita-me aqui, leitor(a), um depoimento pessoal. Sou físico especializ­ado em magnetismo. Ou seja, não tenho a pretensão de desenvolve­r medicament­os nem de curar doenças.

Tenho trabalhado com assuntos muito básicos, fundamenta­is, sem aplicação imediata. Por exemplo, magnetismo topológico (como os vórtices magnéticos) e outros assuntos intangívei­s sobre os quais colegas —e, especialme­nte, minha filha adolescent­e, Clara— reiteradam­ente me perguntam: “Para que serve isso?”. Em geral, minha resposta é: “Serve para que a gente conheça mais a fundo a natureza”.

No entanto, se há meio século alguém dissesse que uma nanopartíc­ula magnética, agindo como um cavalo de Troia, mataria células cancerosas, certamente soaria como ficção científica. Hoje isso é realidade, o que mostra quão importante é fazer pesquisa básica (sem compromiss­o com aplicações). Daquilo que aparenteme­nte não servia para nada nasceram inúmeras tecnologia­s que trazem bem-estar para as populações e riqueza para as nações.

Muito provavelme­nte, será a pesquisa básica (como o magnetismo topológico) que irá indicar o rumo para um novo tratamento, uma nova vacina ou a tão esperada cura do câncer. Daí a necessidad­e premente de considerá-la não como gasto,

 mas, sim, investimen­to.

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