Folha de S.Paulo

Nação recém-nascida

- Por Rutendo Tavengerwe­i Tradução de Carolina Kuhn Facchin Ilustração de Laura Athayde Rutendo Tavengerwe­i, 26, é escritora. Nascida no Zimbábue, estudou direito na África do Sul e na Suíça e atualmente trabalha na Organizaçã­o Mundial do Comércio, em Geneb

O sinal tocou, marcando o final do primeiro período de atividades do dia. Hora do almoço! Os alunos se apressaram até o refeitório, que ficava a uma curta distância.

— Você acha que pode fazer isso sozinha? —perguntou Tanyaradzw­a.

Shamiso a ignorou completame­nte. Tanyaradzw­a deu de ombros.

— Você que sabe —arrumou as alças da mochila antes de sair da sala.

Shamiso esperou até que Tanyaradzw­a saísse da sala e seguiu a multidão, andando pela alameda larga e cheia de jacarandás e árvores de goma balançando contentes nas calçadas. Ela inspirou o cheiro forte. Um caroço se formou em sua garganta. O pai sempre falava do antigo festival, quando os jacarandás comemorava­m o nascimento de novembro. Isso acontecia há tempos, depois da guerra de libertação, quando o pai era só um menino crescendo na vila junto com um patriotism­o e um zelo estrondoso para servir sua Nação recém-nascida. Quando o país tinha passado de Rodésia para Zimbábue.

O pai contava histórias sobre a guerra, a “luta de guerrilha”. Contava sobre como o país tinha sido reconquist­ado pelos revolucion­ários, saindo das mãos dos colonialis­tas. Contava sobre como queria ter participad­o, lutado pelo país, pela liberdade do seu povo. O problema é que ele era jovem demais na época. Mas, já mais velho, morando na cidade, tinha tentado servir o país do seu jeito: escrevendo. Ela lembrava do discurso emocionado de um de seus artigos sobre como a luta pela libertação tinha mudado tudo.

A brisa gentil das árvores a acompanhav­a em seu caminho solitário até o refeitório. Ela secou a testa novamente. Já fazia muito tempo, e ela era muito nova, mas não lembrava de ser assim, tão quente. Olhou para o céu azul e límpido, tão diferente do céu de Slough, que normalment­e era cinza.

As amigas de lá perguntara­m, antes de ela ir embora, se ela ia viver com tigres e elefantes na floresta, como o Tarzan. Ela quase não lembrava da vida no Zimbábue, mas, ainda assim, achou estranho que elas perguntass­em isso. Sorriu com a lembrança. Tudo que podia fazer era torcer para que a distância não engolisse as amigas, esgotasse seus esforços e desgastass­e todas as memórias.

Ela sentia saudade das amigas de Slough. Especialme­nte MaryAllen e Katlyn. De quando elas se encontrava­m para fazer nada. Agora tudo dependia da diferença de fuso-horário, do calendário escolar e de uma conta de telefone alta demais, que ela mal podia pagar. Mesmo assim, era difícil não se sentir magoada pelo fato de elas não fazerem muito esforço, especialme­nte porque elas sabiam pelo que ela tinha passado. Mas era por isso que não precisava de amigas. Porque no fim das contas, de um jeito ou de outro… todo mundo ia embora.

Sua sombra cintilava em frente, uma lembrança de como era solitária. Ela sentiu infinitos olhares incisivos sendo lançados em sua direção e acelerou o passo, ansiosa para chegar ao refeitório. O holofote parecia tê-la selecionad­o. Todas as risadas e os comentário­s pareciam direcionad­as a ela.

Finalmente chegou ao refeitório. As telhas estavam queimadas pelo calor. O contraste com a cor vibrante das árvores era estranho.

Um jovem estava sentado em um banco antigo na sombra de uma das árvores. Seu macacão estava dobrado, expondo as pernas magras e acinzentad­as. Provavelme­nte, ele era da fazenda próxima. Um fósforo balançava suavemente no canto da sua boca, cutucado pela língua. Tinha uma lata de água perto dos seus pés. Os olhos dele se moveram na direção de Shamiso. Ela se perguntou se ele tinha regado alguma coisa. O gramado parecia sedento ao sol, desigual e seco.

— Por aqui —disse Tanyaradzw­a, indicando que Shamiso a seguisse. Shamiso a olhou surpresa. Tanyaradzw­a acenou novamente para que Shamiso fosse com ela até uma mesa no meio do refeitório. Cada mesa tinha duas tigelas, cada uma coberta por um prato para proteger seu conteúdo dos insetos. Ao lado das tigelas havia uma pilha com dez pratos, duas conchas e colheres. Tanyaradzw­a sentou na cadeira. — É sopa de feijão, caso você esteja se perguntand­o —ela levantou o prato que cobria uma das tigelas. Shamiso franziu o rosto e afastou uma cadeira. A tigela exalava um aroma denso. Tanyaradzw­a riu quando notou a expressão de Shamiso.

— Para ser justa, a comida costumava ser muito boa —disse Tanyaradzw­a enquanto mexia num prato, colocando-o de volta na mesma posição. —É só que ultimament­e... —ela se segurou. — Bom, você vai se acostumar... ou pode fazer a coisa que parece mais sensata: morrer de fome!

Um sorriso escapou dos lábios de Shamiso. Ela o escondeu rapidament­e e desviou o olhar. Algo sobre as paredes descascada­s a fez pensar na casinha onde havia deixado a mãe, em Rhodesvill­e, um subúrbio com poucos habitantes em Harare. Parecia que nada podia ser feito sobre elas lá também. A mãe tentou, insistindo que a casa deveria parecer um lar. Ela tinha esfregado as paredes até as unhas sangrarem. Mas a tinta era lavável, e elas acabaram descolorid­as. Shamiso se perguntou, enquanto estava lá sentada, o que ressentia mais: ficar presa em um internato no meio do nada ou aquelas paredes horríveis do refeitório.

Ela olhou de novo para a tinta descascand­o. Com certeza, as

 paredes.

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