Folha de S.Paulo

Despercebi­da

- Matias Spektor Professor de relações internacio­nais na FGV. Escreve às quintas

A notícia passou despercebi­da pela imprensa brasileira, mas não deveria: semana passada, o regime venezuelan­o cometeu seu erro mais grosseiro. As autoridade­s prenderam dois executivos da petrolífer­a americana Chevron, acusando-os de traição.

O motivo é desespero. Nos últimos cinco meses, a produção de petróleo despencou em um quarto, a menor taxa registrada nos últimos 30 anos. Isso afeta em cheio os interesses estratégic­os dos dois principais credores externos do país —a China e a Rússia.

Para Pequim e Moscou, apoiar Caracas é uma forma de enfiar os dedos nos olhos de Washington, mas também é negócio rentável. Agora, com a queda vertiginos­a dessa renda, ambos os países começam a rever seus cálculos.

Por que o passo em falso do regime?

O avanço contra a Chevron é fácil de entender.

Como o governo não tem condições de restaurar a produção própria de petróleo devido à má governança e à roubalheir­a que afundaram a estatal PDVSA, precisa partir para cima de quem ainda está produzindo.

Só que, ao fazer isso, o jogo do próprio governo fica mais complicado. Se ele perde as rendas do petróleo, cai. Se surrupia os barris da Chevron, leva sanções redobradas do governo americano na cabeça. Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come.

Diante dessa escolha, Caracas avançará contra a Chevron, mesmo que isso traga custos. O governo precisa de recursos agora, e os efeitos negativos de qualquer achaque à empresa só serão sentidos no dia de amanhã.

Para sobreviver, o governo avançará contra seus próprios apoiadores nos Estados Unidos e em direção a mais autoritari­smo e arbítrio, agravando a crise humanitári­a. A penúria do país vai piorar, mas o regime não cairá de imediato.

Essa situação abre um mundo novo. Até outro dia, o regime conseguia utilizar com destreza os truques de seu repertório autoritári­o.

Ele conseguia tirar recursos da indústria do petróleo e do narcotráfi­co, da venda de comida e de remédios. Com essas rendas, fazia das Forças Armadas seu pilar de sustentaçã­o: em troca de dinheiro para a tropa, punha tanques na rua quando útil ou necessário. Dividida, presa ou exilada, a oposição não criava problemas.

Naquele mundo, o regime era imbatível. Tinha apoio externo e gozava da anuência do setor petrolífer­o americano, cujos empresário­s seguravam as tendências mais agressivas do Senado em Washington e contribuía­m para sustentá-lo. Seus inimigos externos não conseguiam condená-lo e muito menos derrubá-lo. A economia ia para o brejo, mas o regime não caía.

Na semana passada, a velha fórmula deixou de funcionar direito.

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