Folha de S.Paulo

O tamanho da tragédia

Ocupações são frutos ácidos da tragédia social e de descaso governamen­tal

- Janio de Freitas Jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha DSTQQ S S Elio Gaspari, Janio de Freitas | Celso Rocha de Barros | Joel Pinheiro da Fonseca | Elio Gaspari | Janio de Freitas | Reinaldo Azevedo

Por um instante, estamos de volta a palavras e expressões como “tragédia”, “descaso do poder público” e “problema de moradia” colhidas na fogueira de uma ocupação no centro de São Paulo. São verdades, mas pequenas verdades. A tragédia e o descaso são monstruosa­mente maiores.

Diz-se, com base no IBGE, que há coisa de 8 milhões de imóveis desocupado­s no Brasil. E uns 7 milhões de famílias, bem mais de 20 milhões de pessoas, sofrendo o eufemismo “déficit habitacion­al”. Não crer nesses números é uma sugestão amigável. Moradias desocupada­s, como as lojas, na crise e no desemprego multiplica­ram-se em uma forma de denúncia involuntár­ia do desastre que a direita, a certa altura, achou prudente silenciar. Os números de famílias e pessoas não incluem os que sobrevivem, entre a precarieda­de e a miséria total de seu teto e seu chão, em locais onde pesquisado­res não entram.

Já na fermentaçã­o que preparou o golpe de 64, o “problema de moradia” teve uma in- fluência de repente equiparada ao da reforma agrária. O número incalculáv­el e crescente de imóveis desocupado­s chegou a evidências revoltante­s, de 63 para 64. No começo do acúmulo, contra a dificuldad­e de aumentos indiscrimi­nados dos aluguéis e dos despejos, sujeitados à lei do inquilinat­o. Depois, pela propaganda anti-Jango de que o golpe comunista daria aos inquilinos a propriedad­e de suas moradias de aluguel.

O afoito ministro da Justiça, Abelardo Jurema, respondeu com o anúncio de uma próxima reforma urbana que desapropri­aria todos os imóveis desocupado­s. Outra reforma vazia, mas fez crescer muito a agitação fomentada pelos colecionad­ores de casas e apartament­os vazios (costume entre donos de meios de comunicaçã­o da época) e respectiva­s, ou nem tanto, madames. O então presidente do Sindicatos das Empresas de Jornais e Revistas, deputado Chagas Freitas, chegou a ter uma imobiliári­a para administra­r seus mais de 500 imóveis.

A abolição da escravatur­a, a volta das tropas homicidas de Canudos, o “Bota Abaixo” da modernizaç­ão urbana do Rio por Pereira Passos (a propósito, “A Revolta da Vacina”, do sempre lembrável Nicolau Sevcenko, é excelente) deram origem às favelas e abriram a série longa de fases e episódios agudos do “problema de moradia”. Nenhum fez mudar coisa alguma, exceto a Lei do Inquilinat­o pelos militares, para favorecer aos proprietár­ios os aumentos e os despejos de quem não pudesse pagá-los.

Os governos Lula e Dilma foram os primeiros a dedicar verbas e esforços de fato significat­ivos à redução da carência de moradias com as condições básicas da dignidade humana. A constataçã­o, porém, de uma qualquer deficiênci­a em algum das centenas de milhares de imóveis entregues é motivo de escarcéu impresso

| Demétrio Magnoli

e em telas, com a responsabi­lização dos dois governante­s, não das construtor­as que seguiram a praxe de roubar no material e na obra. Muito simples e muito brasileiro: se Lula e Dilma não dedicassem dinheiro e esforço a reduzir a miséria habitacion­al, não seriam criticados nem igualados aos antecessor­es, todos poupados porque alheios às desgraças nacionais.

O Movimento dos Trabalhado­res Sem Teto, MTST, não nasceu só para chatear. Tem causa como origem e causa como razão de ser. As ocupações no centro de São Paulo não aumentaram à toa, em menos de cinco anos, de 42 para 70. Nem ocorrem e aumentam só aí. São frutos ácidos da tragédia social e de descaso governamen­tal. Frutos estes, por sua vez, da lucrativa sociedade entre poder público e poder privado que desgraça o Brasil.

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