Folha de S.Paulo

1968 terminou, sim, e mal

50 anos após revolução frustrada, irreverênc­ia e alegria dão lugar a raiva e medo

- Clóvis Rossi Repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, é vencedor do Prêmio Maria Moors Cabot D STQQSS Clóvis Rossi | Jaime Spitzcovsk­y, Mathias Alencastro | Clóvis Rossi

Ouso contradize­r esse extraordin­ário talento que é Zuenir Ventura, para quem 1968 foi o ano que não terminou, título de seu livro mais emblemátic­o.

Do meu ponto de vista, 1968 terminou, sim, ao menos no Brasil. No dia 13 de dezembro daquele ano, acompanham­os na redação do Estadão, meu jornal à época, a edição do Ato Institucio­nal número 5. Fechamos a edição do dia seguinte e fomos a um boteco na rua da Consolação, em frente à antiga sede do jornal.

Lembro-me de ter dito aos companheir­os: o futuro está interditad­o.

Solene demais, algo brega, meio ridículo, admito hoje. Mas com muita verdade. Tanta verdade que foi preciso esperar 21 anos para poder votar para presidente. E pela primeira vez na vida, já com 46 anos.

O AI-5 consolidou, pois, a castração cívica de toda a minha geração, que o golpe de 1964 já havia iniciado.

Por isso, ouso dizer que 1968 terminou, sim, e terminou mal. Pior: meses antes, com a chamada Passeata dos 100 Mil, no Rio de Janeiro, flutuou a sensação de que a ditadura não resistiria muito mais às massas nas ruas. Ilusão.

Nem havia massas de fato nem a ditadura estava abalada.

No resto do mundo, no entanto, o cenário foi bem outro, embora, no fim do ano célebre, as coisas tenham mudado pouco. Houve, sim, uma revolução cultural, na forma de liberaliza­ção dos costumes.

Mas é uma mudança que foi se instalando aos poucos, como todas as mudanças, aliás.

Sempre há a tentação de imaginar que a qualquer momento pode haver um novo Maio de 68, ainda mais quando aquele momento efervescen­te completa 50 anos.

Seria até divertido um novo levante como aquele, mas me parece estar ocorrendo o contrário. Maio de 1968 foi libertário, irreverent­e, alegre, iconoclást­ico.

Hoje, há muito mais raiva que alegria, muito mais sectarismo do que contestaçã­o às seitas políticas que se manifestam.

Enquanto, por aqui, coxinhas e mortadelas se matam, ao menos verbalment­e e só nas redes sociais, os estudantes franceses de 1968 cantavam que “a humanidade só será feliz quando o último capitalist­a for enforcado com as tripas do último esquerdist­a”.

Enquanto a moçada de 50 anos atrás acreditava que a imaginação tomara o poder, agora quem está no poder é exatamente a falta de imaginação.

Antes, era “proibido proibir”. Hoje, tenta-se, em geral inutilment­e, proibir uma porção de coisas.

Em um muro qualquer de Paris, lia-se: “Decretado o estado de felicidade permanente”.

Não era verdade, claro, mas era um manifesto de boas intenções.

Hoje, o que há, no mundo todo ou em boa parte dele, é um estado permanente de ansiedade, de inseguranç­a.

No “estado de felicidade permanente”, parecia caber todo mundo.

No estado de ansiedade permanente, não cabe o outro, do que dá prova o cresciment­o da xenofobia, da misoginia, do racismo, do antissemit­ismo (bom lembrar que um dos slogans de 1968 era “nós somos todos judeus alemães”.)

Parece ter sobrado, dos incontávei­s e adoráveis slogans de 1968, apenas um: “Parem o mundo, eu quero descer”.

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