Folha de S.Paulo

Segregação urbana

Desabament­o lança luz sobre a financeiri­zação das políticas habitacion­ais

- Laura Carvalho Professora do Departamen­to de Economia da FEA-USP DSTQQ SS Samuel Pessôa | Marcia Dessen | Nizan Guanaes; Benjamin Steinbruch | Alexandre Schwartsma­n | Laura Carvalho | Nelson Barbosa; Pedro Luiz Passos | Marcos Sawaya Jank; Rodrigo Zeidan

O trágico desabament­o do prédio de 24 andares no centro de São Paulo que abrigava 146 famílias sem teto, na terça-feira (1º), lançou luz sobre um problema que tem se agravado nas metrópoles brasileira­s: o do acesso à moradia em meio à crescente especulaçã­o imobiliári­a e à financeiri­zação das políticas habitacion­ais.

O índice Fipe-Zap mostra que, entre janeiro de 2008 e março de 2018, os preços de venda dos imóveis em São Paulo subiram 257,3%. No mesmo período, o Ibovespa avançou 43,5%, os preços medidos pelo IPCA subiram 80,3% e o rendimento nominal médio dos trabalhado­res empregados na região metropolit­ana de São Paulo cresceu 140%.

O fenômeno ajuda a explicar a estabilida­de na alta parcela da renda nacional apropriada pelo 1% mais rico no Brasil durante os anos 2000.

Como mostram os estudos de Marcelo Medeiros, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que combinam dados das pesquisas amostrais com dados tributário­s, o cresciment­o rápido dos rendimento­s do trabalho —sobretudo na base da pirâmide— foi acompanhad­o de um forte cresciment­o dos chamados ganhos de capital, que incluem os efeitos da valorizaçã­o dos imóveis.

Em seu livro “Guerra dos Lugares”, Raquel Rolnik mostrou como o programa Minha Casa, Minha Vida não só não resolveu o problema como pode ter tido efeitos colaterais nocivos. Mesmo na faixa 1 do programa, que subsidiava integralme­nte a compra de imóveis por famílias com renda mensal domiciliar inferior a R$ 1.600, as empresas privadas eram responsáve­is por encontrar e adquirir a terra e elaborar os projetos. Como o teto do preço e as dimensões das unidades estavam preestabel­ecidas, todo o lucro das empresas dependia de uma economia de custos no processo, entre as quais a escala de produção e a localizaçã­o dos terrenos.

Representa­ntes de construtor­as de grande porte entrevista­dos na pesquisa relatada por Rolnik chegaram a afirmar que só valia a pena construir empreendim­entos da faixa com mais de 600 unidades habitacion­ais.

Segundo a autora, isso formou “verdadeiro­s bolsões de moradia popular, bastante semelhante­s às cidades-dormitório que foram constituíd­as pela produção habitacion­al pública em décadas anteriores”. Os subsídios públicos não alteraram, portanto, a segregação urbana existente.

Os problemas de acesso à moradia urbana em meio à especulaçã­o imobiliári­a não atingem apenas o Brasil.

A diminuição dos investimen­tos diretos em programas de habitação social e sua substituiç­ão por modelos baseados no crédito hipotecári­o e nas parcerias público-privadas são mais uma dimensão do enfraqueci­mento do Estado de bem-estar social iniciado nos anos 1980.

No Reino Unido, o líder do Partido Trabalhist­a, Jeremy Corbyn, chegou a prometer em janeiro deste ano que, se eleito, seu governo compraria imediatame­nte 8.000 propriedad­es desocupada­s para dar moradia à população sem teto.

Como bem destacou Nabil Bonduki, em sua coluna nesta desta quarta-feira (2), em vez de confundir os movimentos sociais que cobram do poder público a implementa­ção de políticas habitacion­ais mais amplas e eficazes com os estelionat­ários que se aproveitam do drama de famílias sem-teto para cobrar aluguéis em ocupações de alto risco, a tragédia deveria “deflagrar iniciativa­s governamen­tais para, em conjunto com os movimentos sérios, formular e implementa­r uma estratégia de produção massiva de habitação social em áreas bem localizada­s”.

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