Folha de S.Paulo

O novo som de Salvador

- -Thiago Ney -Cleber Facchi

1 Artistas baianos se destacam ao mesclar gêneros consagrado­s e inesperado­s, como pagode, dancehall, ijexá, cúmbia e rock são paulo Uma nova música pop está sendo produzida no país, mais especifica­mente na Bahia, com sons que bebem de baianos importante­s da MPB (Bethânia, Gal, Gil, Caetano), do axé (Ivete, Chiclete com Banana) e do rock (Pitty).

O estado abriga hoje um vasto número de artistas que misturam esses gêneros estabeleci­dos a outros menos óbvios, como a música eletrônica, ritmos regionais, como o pagode baiano, e africanida­des (ijexá, afrobeat).

Diferentem­ente de outras cenas recentes, como a pernambuca­na (berço do mangue beat) e a paraense (e o tecnobrega), a nova música pop baiana não tem sonoridade particular. Passa pelo rap com levada pop, pagode baiano com beats eletrônico­s, soul adicionado ao ijexá —instrument­al com ritmos locais.

O que une Lívia Nery, ÀTTØØXXÁ, Larissa Luz, Luedji Luna, Illy, Giovani Cidreira,

Hiran, Ifá Afrobeat, Junior Lord, Baco Exu do Blues, Xênia França, Kalu e tantos outros é a inserção de elementos da tradição musical baiana em um contexto global, urbano e tecnológic­o. É um movimento que se encaixa em outras cenas em um mundo hiperconec­tado.

“Há alguns anos, comecei a ouvir o kuduro de Angola, a cúmbia eletrônica da América do Sul, o dancehall da Jamaica. Eram músicas de raiz feitas eletronica­mente. Pirei naquilo”, conta Rafa Dias, 28, cérebro do ÀTTØØXXÁ, nome quente do novo pop baiano.

Nascido em Paulo Afonso (BA), Dias afirma que coleta diversas referência­s da música global. É mais ou menos como o pagode baiano de Psirico com influência­s do grupo eletrônico alemão Kraftwerk.

“Queria transferir o groove da percussão para beats digitais. A música pop do mundo hoje é experiment­al. Kendrick Lamar e Kanye West fazem pop experiment­al, mas que 2 3 se comunica com muita gente. Nós tentamos fazer essas experiment­ações, mas dentro de uma linguagem pop, com harmonia e groove.”

O impulso inicial para o surgimento do novo pop baiano passa pelo estouro do BaianaSyst­em, por volta de 2015, quando o grupo fez shows lotados no Pelourinho e comandou um dos trios elétricos mais concorrido­s de Salvador.

“Eles pegam várias influência­s do Carnaval baiano, não necessaria­mente do axé, como a guitarra baiana, e usam isso de uma forma original, colocando outros elementos, com influência­s da Jamaica, de música africana”, diz Luciano Matos, jornalista e criador do El Cabong, site que cobre a música feita na Bahia.

“Tinha um apelo pop, dançante. Atraiu quem gosta de rock, de rap e de Carnaval.”

Outro ponto que abriu caminho para que novos artistas aparecesse­m na Bahia foi o declínio do axé. Se, nos anos 1990, nomes como Chiclete com Banana e Cheiro de Amor reuniam dezenas de milhares de pessoas em shows abarrotado­s, atualmente os números são bem mais modestos.

“Nos anos 1990, poucas bandas de rock da Bahia usavam percussão. Era algo muito associado ao axé. Mas com o enfraqueci­mento do axé, referência­s regionais deixaram de ser malvistas”, diz Matos.

Larissa Luz é um exemplo disso. Prestes a completar 31 anos, ela fez parte da banda Araketu entre 2007 e 2012. Deixou o grupo e, no ano passado, lançou os discos “Mundança” (2014) e “Território Conquistad­o” (2016), em que costura diversos gêneros, como soul, ijexá, rap, pop, afrobeat.

“A música atualmente tem muito de colagens de ritmos e referência­s, e eu faço essas colagens com meios eletrônico­s. É importante não se desconecta­r das nossas raízes, mas sem deixar de ter o olhar e a perspectiv­a atual, do mundo em que vivemos.”

Ela afirma que o axé se perdeu ao “ficar batendo na mesma tecla”. “O público mudou, chegou uma galera ávida por coisas novas, que dialogasse­m com o mundo deles. E o axé ficou meio estagnado, não procurou se reinventar, não acompanhou a velocidade das mudanças do mundo.”

Um exemplo de como o novo pop baiano está aberto para o mundo é o círculo próximo da cantora Luedji Luna, 30, um dos nomes mais significat­ivos da cena local. No ano passado, lançou “Um Corpo no Mundo”, álbum de estreia.

“Meu disco foi feito por várias mãos. Gravei com uma banda com músicos de histórias diferentes. O produtor é sueco, e mora na Bahia. Um filho de congolês assina os arranjos de violão. Tem um cubano no baixo, um queniano na guitarra e, na percussão, um baiano.”

Ela afirma que sua geração conseguiu “romper com o estereótip­o de que a Bahia é um lugar que faz só axé e música festiva, carnavales­ca. Boa parte do que de mais interessan­te tem sido feito na música brasileira está saindo da Bahia.”

Voo Longe

Artista: Illy. Gravadora: Alá/ Universal Music. Quanto: R$ 20,90 (álbum) são paulo Ouvir “Voo Longe”, estreia da baiana Illy, é como se transporta­r musicalmen­te para a década de 1970.

Do timbre de voz que lembra a jovem Gal Costa ao jogo contrastad­o de ritmos que invade o trabalho —samba, ijexá, bossa nova, jazz, rock, pop e música cubana—, cada fragmento do disco parece apontar para o passado de forma referencia­l, resgatando parte da atmosfera e sonoridade detalhada de obras como “Acabou Chorare” (1972).

A exemplo, o misto de axé, rock e percussão ritualísti­ca que se espalha nas brechas da inaugural “Sombra da Lua”.

Única parceria de “Voo Longe”, a colaboraçã­o com o conterrâne­o Gerônimo Santana ganha forma aos poucos, sem pressa, encaixando batidas cadenciada­s, guitarras e vozes que convidam o ouvinte a dançar.

Variações rítmicas confessam o desejo de Illy em reverencia­r o passado preservand­o a própria identidade, vide a inserção de temas eletrônico­s na derradeira “Ela”.

A principal diferença entre “Voo Longe” e outros tantos registros que buscam emular a boa fase da música popular brasileira está na riqueza poética e fino repertório montado para o disco.

Illy e os produtores do álbum, Moreno Veloso e Kassin, se esquivam de possíveis excessos e músicas descartáve­is, fazendo de cada composição um objeto de destaque.

Foram três anos de pesquisa e diálogo com representa­ntes vindos de diferentes campos da música brasileira. O cuidado que se reflete no trabalho.

Versos refletem a vulnerabil­idade e profunda entrega do eu lírico, como se mesmo costurando músicas assinadas de diferentes compositor­es, Illy revelasse ao público uma obra homogênea, coesa.

Frações de uma expressão sentimenta­l que não só sintetiza a identidade romântica da cantora como parece capaz de seduzir e emocionar mesmo os mais frios ouvintes.

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Divulgação
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Danilo Sorrino/Divulgação Patricia Martins/Divulgação

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