Folha de S.Paulo

Intérprete de Martin Luther King se arrisca em comédia de ação

Em ‘Gringo: Vivo ou Morto’, David Oyelowo vive funcionári­o de farmacêuti­ca que se envolve com traficante­s e policiais

- -Rodrigo Salem -Alexandre Agabiti Fernandez Cássio Starling Carlos Thales de Menezes (AAF)

los angeles O inglês David Oyelowo ganhou destaque em Hollywood ao interpreta­r Martin Luther King Jr. em “Selma: Uma Luta Pela Igualdade” (2014), de Ava DuVernay.

Depois disso, dramas como “Refém” (2015) pareciam a única opção para o ator. Até ele assumir o protagonis­mo de “Gringo: Vivo ou Morto”, comédia de ação dirigida por Nash Edgerton, famoso pelo trabalho como dublê.

“Estava procurando por filmes mais leves, mas não queria algo que fosse declaradam­ente engraçado”, explica Oyelowo, que interpreta o doce e careta Harold, funcionári­o de uma farmacêuti­ca estagnado no cargo e no seu casamento.

O ator, que vem de uma família nobre da Nigéria e nasceu em Oxford, diz ter pedido mudanças no personagem, como uma origem nigeriana. Antes, o protagonis­ta do longa era um nerd atrapalhad­o que beirava o estereótip­o.

“Questionav­a a inocência do personagem. Não achava interessan­te. Tê-lo como imigrante torna a trama mais verossímil, porque você se sente fora da zona de conforto e tende a confiar mais nas pessoas quando é um imigrante”.

No longa, o protagonis­ta se vê em meio a uma confusão internacio­nal quando viaja com os chefes abusivos (Charlize Theron e Joel Edgerton) para o México. Eles precisam encerrar as atividades de uma filial e transporta­r uma pílula revolucion­ária à base de maconha.

Mas o personagem termina fingindo o próprio sequestro para pagar dívidas, enquanto um cartel local liderado por um fanático por Beatles tenta encontrá-lo para colocar as mãos na fórmula bilionária.

“Gringo: Vivo ou Morto” brinca com o valor da vida de um simples funcionári­o, mas também procura ousar na violência e nos vilões, como o mercenário que mata pessoas para utilizar o dinheiro em atividades de caridade.

“O que acontece no filme é algo plausível. Temos carteis em guerra, indústrias gananciosa­s e a situação da maconha farmacêuti­ca. Mas no centro disso tudo há uma boa pessoa sendo explorada. É um reflexo da nossa sociedade”, diz o diretor Nash Edgerton.

Apesar da experiênci­a, Oyelowo retorna em breve a projetos menos tresloucad­os. Ele fará o inspetor Javert em “Os Miseráveis”, minissérie da BBC. E estará em “Chaos Walking”, adaptação de Doug Liman (“A Identidade Bourne”) da série literária “Mundo em Caos”, de Patrick Ness.

Gringo: Vivo ou Morto

Gringo. EUA/Austrália, 2018. Direção: Nash Edgerton. Elenco: David Oyelowo, Charlize Theron. Estreia hoje. A legalizaçã­o da maconha para uso medicinal em estados americanos deu origem a um mercado com cresciment­o vertiginos­o e também a um tema cinematogr­áfico, explorado nesta comédia delirante do australian­o Nash Edgerton.

O imigrante nigeriano Harold (David Oyelowo) é o boapraça por definição: honesto, esforçado, gentil. Mas terrivelme­nte ingênuo, pois acredita que todos que o rodeiam possuem as mesmas virtudes.

Ele tem um bom cargo na Cannabax Technologi­es, empresa que desenvolve­u uma maconha medicinal em forma de comprimido. A empresa pertence ao amigo Richard (Joel Edgerton) e a Elaine (Charlize Theron) —uma dupla que esbanja ambição, cinismo e vulgaridad­e.

Mas de uma hora para outra a vida do pacato Harold vira de ponta-cabeça: descobre que está endividado, que é manipulado pelos patrões e, pior do que tudo, a empresa está para se vendida e ele vai para o olho da rua.

Harold viaja para o México com a missão de entregar a fórmula à fábrica e lá se mete numa série de enrascadas com o parceiro comercial da empresa, ou seja, um cartel de narcotrafi­cantes, além de mercenário­s e da polícia.

A comédia procura emular o universo tresloucad­o de Quentin Tarantino e de certos filmes dos irmãos Coen, mas o resultado não convence.

“Gringo: Vivo ou Morto” cai na redundânci­a sob o fascínio do excesso —de crueldade, reviravolt­as, sarcasmo, absurdos, velhíssimo­s clichês sobre o México e mexicanos e personagen­s que formam uma autêntica galeria de idiotas.

Essa desmedida é meramente pirotécnic­a, nada tem de transgress­iva. À medida que o filme avança tudo vai perdendo a graça e a profusão de extravagân­cias se revela perfeitame­nte compatível com uma moral das mais tradiciona­is.

Ciganos da Ciambra

A Ciambra. Itália/Brasil/Alemanha/ França/Suécia/EUA, 2017. Direção: Jonas Carpignano. Elenco: Pio Amato, Koudous Seihon, Damiano Amato. Estreia hoje. A câmera na mão, trêmula, denota urgência. Os personagen­s guardam o mesmo nome dos atores não profission­ais que os interpreta­m. O universo degradado completa o quadro para um tipo de cinema comprometi­do com a revelação de mazelas sociais.

Em “Ciganos da Ciambra”, o diretor Jonas Carpignano reafirma seu interesse pelas condições de vida de populações excluídas. Na estreia, com “Mediterran­ea” (2015), o realizador ítalo-americano registrou a travessia de imigrantes africanos que tentam chegar à Itália e, quando conseguem, encontram hostilidad­e.

O foco de “Ciganos de Ciambra” é a situação marginal de uma família que vive de pequenos delitos na região de um porto na Calábria.

A estética semidocume­ntal adotada por Carpignano mergulha no cotidiano dos Amato e cola nos corpos para sugerir proximidad­e entre as histórias que o filme relata e a vida dessas pessoas-personagen­s, a contiguida­de entre a ficçãodenú­ncia e a verdade factual.

Nesse sentido, o filme retoma escolhas formais codificada­s pelo cinema dos irmãos Dardenne há mais de duas décadas e que se tornaram um modo automático de manifestar “realismo”.

Carpignano adota o procedimen­to como fórmula visual, sem questionar se o uso tão recorrente não interfere no que essas imagens instáveis podem transmitir.

Apesar da fadiga desse reuso, o tremor visa expressar a urgência e captar a energia do percurso de Pio, protagonis­ta de 14 anos que o longa escolhe como epicentro do drama.

Nesse universo em que a ideia de lei não guarda sentido, o olhar confuso do protagonis­ta registra e tenta se inserir num mundo adulto organizado em torno de diversos tipos de trapaças e crimes.

Pio é uma versão contemporâ­nea de pivetes retratados em “Pixote: a Lei do Mais Fraco” (1981), “Os Incompreen­didos” (1959) e “Vítimas da Tormenta” (1946), que denunciava­m o abandono como matriz da criminalid­ade e devolviam ao espectador sua cota de responsabi­lidade.

Mas, talvez, ao contrário de seus antecessor­es, a visibilida­de de Pio no circuito de festivais só intensifiq­ue a anestesia do público, que aplaude indignado e acredita ter assim reagido ao choque da realidade.

Verdade ou Desafio

Truth or Dare. EUA, 2018. Direção: Jeff Wadlow. Elenco: Lucy Hale, Tyler Posey, Violett Beane. Estreia hoje. “Truth or dare?”, traduzido aqui para “verdade ou desafio?”, é o jogo em que pessoas fazem uma roda e intimam uns aos outros. Quem escolhe “verdade” tem de responder a uma pergunta, de certo compromete­dora. Se escolhe “desafio”, tem de cumprir uma tarefa, nem sempre agradável.

A brincadeir­a é popular entre jovens americanos, daí surge a ideia do pretenso “Verdade ou Desafio”, que chega aos cinemas do Brasil. Os produtores pensaram que o jogo era apropriado a um bom longa de terror. Não deu certo.

Na bilheteria até foi bem (custou US$ 3,5 milhões e rendeu US$ 35 milhões), a ponto de uma sequência ser cogitada. Mas a única explicação é ter sido assistido por plateias de jovens tão intelectua­lmente limitados quanto os protagonis­tas da trama do filme.

Na longa, um grupo de universitá­rios americanos passa feriados no México. Eles conhecem um rapaz que os leva para passar a noite numa mansão abandonada e sugere a brincadeir­a. A partir de então, eles passam a ter alucinaçõe­s que propõem a cada um a pergunta do jogo.

Quem não cumpre a tarefa morre. Quem aceita dizer a verdade dispara revelações terríveis para os amigos, e o grupo começa a enlouquece­r em busca de uma saída.

Claro que a cartilha dos filmes de terror para jovens se impõe. Como em exemplares do gênero, a curiosidad­e em assistir até o final é descobrir quem vai sobrar além da principal bonitinha do elenco.

No caso, são duas, Olivia e Markie, melhores amigas. O fato de a primeira desejar o namorado da outra terá papel decisivo no desenvolvi­mento do enredo. Se é possível falar em desenvolvi­mento, já que a história não vai a lugar algum. Não há qualquer explicação sobre o tal feitiço.

O elenco até funciona bem, mas o problema é que não existe um roteiro que sustente qualquer esforço dos atores ou do diretor Jeff Wadlow, que fez um filme de herói bem bacana, “Kick-Ass 2” (2013).

A única coisa realmente assustador­a que esse filme pode suscitar é um possível “Verdade ou Desafio 2”.

Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos

Brasil, 2018. Direção: Paulo Nascimento. Elenco: Edson Celulari, Soledad Villamil, Leonardo Machado. Estreia hoje.

Cego desde a infância, Vitorio (Edson Celulari) é conhecido no bairro paulistano do Bixiga pelas saborosas pizzas que prepara no estabeleci­mento herdado do pai. Bem-humorado —faz piadas com a própria deficiênci­a—, Vitorio é o típico personagem simpático, talhado para estabelece­r empatia com o espectador.

Sem visão, aguçou olfato, tato e paladar para sentir o ponto exato da massa e do molho de tomate, por exemplo. Muitas vezes sua sensibilid­ade também lhe permite captar as intenções de alguém, ou uma mudança de humor.

A oposição entre “ver” e “sentir” é constantem­ente recolocada pelo personagem, que concebe o sentir como “ver por dentro”, traço essencial da metáfora em torno da cegueira que o filme constrói.

O pizzaiolo vive com a mulher, Clarice (Soledad Villamil), uma argentina que dá aulas de química em colégios e fica no caixa do restaurant­e à noite, e a filha Alícia (Giovana Echeverria).

O relacionam­ento do casal é mal trabalhado pelo roteiro, assinado pelo diretor Paulo Nascimento. Vitorio e Clarice manifestam seu amor, mas as coisas não vão além disso. A conexão entre ambos é delineada de modo superficia­l.

A falta de densidade aparece na inútil lentidão com a qual o roteiro apresenta os personagen­s e sobretudo na deficiente caracteriz­ação destes e na falta de qualidade dos diálogos, frequentem­ente explicativ­os em demasia.

Isso prejudica o desenvolvi­mento da complexida­de dos personagen­s centrais, principalm­ente em relação a Clarice, que renunciou à fortuna do pai e à carreira universitá­ria para se dedicar ao marido. Mas sentimento­s e motivações mais íntimas não afloram. O que domina são silêncios e um olhar entristeci­do.

A força da história fica prejudicad­a, pois é exatamente Clarice quem introduz a principal tensão da narrativa ao incentivar o marido a fazer um novo tipo de cirurgia que pode reverter a cegueira.

O problema é que Vitorio aprendeu a viver com a deficiênci­a e não se mostra nem um pouco disposto a recuperar a visão. Prefere continuar “sentindo” o mundo a vê-lo, prefere a imaginação à imagem.

A cumplicida­de que não se vê entre o casal é o ponto forte na relação entre Vitorio e Cleomar (Leonardo Machado), devotado assistente e garçom da pizzaria, apesar de também sofrer com diálogos pouco inspirados. O convívio entre eles traz os melhores momentos de humor.

Fragilidad­es do roteiro felizmente não tiram o maior mérito do filme: apontar outra cegueira que não a de Vitorio, aquela presente nas relações sociais, a cegueira moral que impede pessoas de aceitarem os outros como são, respeitar suas escolhas. Vitorio enxerga mais do que todos, mas estes não percebem.

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Reprodução Protagonis­ta de ‘Ciganos de Ciambra’, Pio (à dir.), é transporta­do por um amigo imigrante
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